27 de dezembro de 2012

Um dia atrás




  Ontem amanheci diferente.
  Só dei conta quando me apercebi que os meus passos estavam mais leves,   soltos, singulares do costume.
  Respirei fundo e senti-me límpido como o céu nas alturas em que me saudava num azul suave e translúcido nos dias em que chovera de noite e a carga das nuvens se esvaíra finalmente. Mas não, nenhuma chuva tinha caído e no entanto o astro estava limpo. O ar suave e puro.
  No meu peito apenas as tenazes da saudade me fizeram ansiar o tempo até chegar perto dela. Um saudar "bom dia" foi suficiente para saber que não estava dormente. Não sonhara, fora verdade, por isso me sentia mudado, diferente, como transformado.
  Dei por mim a sorrir para ninguém, sem estar a olhar para lado algum, sem ver nada porque estava perdido num voo sem coordenadas. “Senti-me dirigir a ti, mais nada!”
  Em redor tudo emergia e confluía no burburinho costumeiro e eu pouco ligava. Que estranho beneplácito ante tanta ferroada, tanto diz-que-disse, tanto mais de menos de mim que me tinha obrigado a ignorar e a criar uma rotina, um hábito.
  Senti de imediato a tua falta.
  Depois disseste, depois falaste, “vou ter contigo daqui a nada”, e o meu coração disparou rumo à verdade. Não que duvidasse, mas foi sentir que a tua e a minha eram a mesma ansiedade.
  Começámos um livro apócrifo e ao contrário. Com palavras. Com silêncios. Com imagens. Com inépcia e torvelinho. Com olhares e beijos, suspiros e anseios. Connosco… de amor feito.



2011



15 de outubro de 2012

Riba




  Há alturas da vida em que apenas olhamos para baixo e o chão parece-nos por demais perto, tanto que nos sentimos parte dele, integrantes, as órbitas repletas de terra, a pele cravejada com o saibro dos dias e a boca infestada pelo húmus pútrido da tristeza.
  Noutras vezes olhamos em redor e não tacteamos nada nem ninguém, tudo é uma imensidão deserta, uma quietude seca e morta, sequer uma brisa nos toca. Espreitamos para além do que pensamos visualizar como horizonte e o que deveria ser uma linha é um rasto disforme e gasoso que nos cega de miopia. Para cima, onde deveriam estar o sol ou a lua, nada se enxerga. Ao que parece nuvens ou deveriam ser gotículas de água condensada, nem sólidas, líquidas ou mistas, altas, médias ou baixas, nada se percebe. Poeira apenas. É uma densa e pesada escuridão que nos contém como que num cubo estanque e sufocante.
  Para cima ou para o lado é uma distância incomportável. Dizer qualquer coisa é como destacar a língua dum rigor mortis pois nada bule ao redor sequer, nada sobrevive numa atmosfera tóxica. E parece que se está no vácuo.
    
  Mas um dia esfregamos as pálpebras com violência, sopramos as teias que nos colam as pestanas e abrimos os olhos piscando-os com dor pela cor que nos ofusca e atrai em frente. O reflexo do coração atravessa a parede e devolve-nos o amor de nós próprios, devolve-nos o céu, o mar, escrito em sol com tinta de lua… devolve-nos a vida.


2012

24 de agosto de 2012

No silêncio desta noite quente ainda não de verão*





    "No silêncio desta noite quente ainda não de verão mas de primavera que mal chegou a ser, de andorinhas tardias e pólenes desorientados, até o som estava oco e parvo. Neste calor, de silêncio cavado na maresia suave que o vento, ora sorvia, ora soprava, nesta noite, até o descompasso do coração não lhe soava bem. Não.


— Viste ele?
— Ontem?
— Sim.
— Não. Aliás, já não o vejo há uns quantos dias.

No silêncio, com esta noite sentia as mãos, não lhe doía o corpo, sentia as pernas, não lhe custava mexer da cintura para baixo, andava de um lado para o outro sem que as grilhetas do tempo pesassem ao arrastar as palavras, ao arrastar o cansaço das palavras, sem que o tempo fosse de chumbo, ferro, uma bola de ferro sem os remates do grilhão da vida que prende aos pensamentos, nada. Não. No silêncio desta noite de primavera que o verão prostituía ele respirava sem sequer ligar ao som descompassado do coração que detinha, para lá de nada, o peito era uma contradição.

— Sabes dele?
— Como assim?
— Ora… viste, falaste com ele?
— Não, não, desculpa, não tinha percebido.
— Pois….
— Que é que queres dizer com isso?
— Nada, nada.
— Ora agora, diz. Fala!
— Caramba, falar o quê? Não percebeste.
— Já pedi desculpa.
— Sim, mas não te preocupaste com ele!
— Vou tentar.
— Caramba, que raio de amigo és tu afinal!?
— Ora bolas, não o tenho visto, só isso.

Todas as tardes ela ia ao quiosque e depois ficava a fumar um cigarro lento como se esperasse o autocarro. Mas nunca ia em autocarro nenhum, ia a pé. Atravessava o estacionamento e depois atalhava caminho pelo descampado. Tantas vezes se encontravam no trajecto que chegaram a trocar “olás”, cumprimentos de circunstância, uns quantos “até amanhã” e, um dia mais frio, de lua obscurecida, ele comentou acerca do frio e da humidade fora de época. Ela parou na conversa. Ele parou pela conversa. No dia seguinte usou a conversa para se demorarem mais pelo atalho costumeiro através do terreno baldio. Entre palavras espetou-lhe a faca bem fundo logo a seguir ao externo e abraçou-a. Não a beijou. Calou-lhe qualquer coisa na boca com a outra mão e cortou até ao baixo-ventre o mais rápido que pode. Apenas um passo atrás e depois, enquanto ela caia, já ele tinha chegado ao fim do baldio, sem pressas, atravessando a estrada."


*(excerto de texto não definitivo) - 2012

16 de agosto de 2012

Ao que podem saber as palavras*




Tenho alturas em que não penso, o meio, seja qual for, o cerne, o interior das coisas é apenas um grande movimento de letras que escrevo através dos braços até aos dedos e depois a tinta, algures, lá o irá pôr. E eu dou, tanto que de suor, tanto que a parte física de mim dói na feitura e depois relaxa até conseguir ler o engaço do mosto das palavras. Tanto que disso o papel não tem páginas. As madeiras estalam e o ferro parece que sufoca, incha. Como répteis a mudar de pele, soltam lascas, cascas, de corrosão ou seja lá de que for, erosão ou dor. E no vento, areias, ínfimas gotículas do mar que não acariciam de sopro, nenhum passar de ar, primeiro brunem, como um galanteio, escovam lentamente, depois zurzem e antes que se dê por isso, corroem profundamente. Pois na superfície o rendilhado pode ser bonito, de coral, mas o interior está desprotegido e frágil. Dar e não receber pode ser um veneno letal.

(...)

     Tenho alturas em que escrevo os silêncios que me dão sem outro modo dos perceber e por isso ponho letras defronte uma das outras para ter algo que consiga ler. Tenho alturas que vomito a revolta que me desassossega até às tripas pelo que vejo e oiço e é injusto, olho para as minhas mãos e sinto-as pequenas, sinto-me pouco. Sozinho e cansado. Com falta de nexo, duvido do meu senso. Sou mal-entendido, evitado, sou estranho, apontado. Com a voz rouca não grito, quando tusso até já me dói a cabeça. Mas dou, tanto que de suor, tanto que o físico dói, claro, mas depois relaxa até conseguir ler o engaço do mosto das palavras. Tanto que disso o papel não tem páginas. Tanto digo isso sem lápis ou esferográficas.



*Excerto - 2011/12

23 de janeiro de 2012

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Mostrar o que se escreve é diferente de escrever para dar a ver a alguém.