6 de setembro de 2011

Alguns Minutos na Treva Fechada




A iluminação não era das melhores, a altura estava desajustada, quiseram que falasse e a luz era demasiado forte. Depois de três cervejas com um dos organizadores, corriam-me gotas salgadas pelas frontes, ardiam-me os lábios porque ventava, muito, “chegas lá e pintas, só isso”, tinham-me dito. Latejava com febre.
Pesei a tela de dois metros por quase cinco, já não me lembro bem, pesava bastante e “é fácil para quem está habituado a pintar grandes superfícies”, carreguei com ela até ao palco, montei dois ou três suportes para que nada descambasse. Sem que se visse, pois a ideia era essa: todo o fundo de cena era o meu trabalho, aquele telão, meio pintado, mascarado, meio coberto de jornais que, consoante o desenrolar dos acontecimentos, eu rasgaria. Pintava… ia rasgando e pintava…
O prelúdio político discursou, o poeta começou então a declamar em seguida e eu subira ao escadote para rasgar as primeiras folhas quando a luz faltou. Deixei-me estar. Enquanto reparei nos desgraçados electricistas esbaforidos, fui racionalizando as ideias e recapitulando os passos. Voltou a luz e eu atirei-me do escadote abaixo, arrastando quase metade dos jornais, peguei nos pincéis e espraiei-me nos contornos. Esperei que o poeta retornasse e rasguei o restante. Entretanto fui para os cantos inferiores ainda em branco e preenchi-os com a história que mal acabava de ser contada. Agachei-me nauseado. Então, com a tela desnuda, pré-pintada, onde apenas sobrava o meio do lado direito, vomitei. Ouvi aplausos. Sentia-me mal. Apanhei os dejectos com a rodilha das mãos e atirei-o para um canto. Depois, com a primeira lata de tinta que encontrei à mão, conquistei o pedaço de tela que faltava com um arremesso violento! Alguém rebolou uma lata de cerveja na minha direcção: “não pares, está fenomenal”, e eu nem sequer ouvia já os actores atrás que desenvolviam a peça que tinha sucedido ao poeta. Levantei o pano e assoei-me. Depois de tragar toda a cerveja com a garganta a doer, disse: Terminei!

Fartei-me de caminhar até Lisboa com as telas debaixo do braço, os catálogos e o curriculum numa pasta amachucada. E gostavam mas comentavam: “trouxe isso tudo para quê?”, as mãos tremiam, doíam-me os braços mas o maior peso era da alma, ferida, que me doía mais que as pernas cansadas. As fotos ficavam, olhadas de relance e não apreciadas, “você disse que era?...”, evocava o nome de quem me tinha enviado o convite para casa, “sim, mas, essa inauguração já passou!”, isso sei eu, caramba, “só estou aqui para mostrar os meus trabalhos!”, quase nem um ruído, apenas um esgar torcido, meio descontente, meio incomodado, “como disse que se chamava?...”.

Fui direito ao lavabo e deixei correr a água para amaciar a camada multicolor que me cobria as mãos. Peguei no sabão e na escova e esfreguei até me doerem os sabugos, até não sentir as pontas dos dedos. Senti-me mal! Senti-me mal porque não me maravilhei com o caleidoscópio das cores das tintas a rodopiar até ao ralo do lavatório. Olhei apenas para o final, o misto cinzento impessoal. Senti-me realmente mal! Tinha as mãos a latejar, ásperas e grossas, incapazes de pintar. Procurei em vão um pouco de creme, um pouco de algo mais em que esvair o meu pensar… Musica? Comer? Não tinha fome de mastigar, não consegui fazer nada a não ser arquejar com falta de ar. A dor era maior que a fome, maior que a falta, maior que o meu ser ao estar. Consegui lembrar-me da forma como queria estar de modo a sentir o sonho partilhado. E foi doloroso! Mais valia não me ter recordado!
Metade das fotos perderam-se nos buracos por onde passei, outra metade foi-se dentro dos buracos causados pela minha maneira de ser: traga para eu ver, solícitos, traga para eu mostrar, mentirosos, traga que eu logo vejo o que posso fazer, os falsos. Metade respondeu que estava ocupada ou que tentara e o tempo não ajudava, a outra parte retorquia que não era ainda altura ou apenas se silenciava.

As poucas coisas que dão vontade para sair daqui, tomam um aspecto ridículo, uma querela parva, a recessão agnóstica e ácida que fere os olhos, gasta e cáustica, prenhe no devir, perdidas em cada lágrima.

As próprias sebes diminuíam-se de frio, o vento estava forte demais, até as próprias árvores tentavam encolher-se, inutilmente, como todos que passavam no jardim rente ao rio. Os que passeavam, ou eram pederastas ou drogados. Sem falsos pudores ou carimbos inusitados, a esta hora era a fauna que transitava, mau agrado para quem apenas queria ir ali como a qualquer outro lado. Lembrei-me do quanto era difícil retirar das mentes dos velhos esta imagem, quando de tarde algum amigo dos pais nos via ir para ali com uma amiga, amigo, namorada? Tristes. Capazes de nos condenar, mas não cientes de se questionarem acerca das razões das suas fontes de informação também ali estarem! Apenas a observar? Pior! Doentio, não?!? Mas ninguém, ninguém se atreveu a questionar… apenas emprenhavam pelos ouvidos, admoestando filhos e filhas, sem ligar à hipocrisia dos pseudo amigos!

Uma frincha meio aberta ou meio fechada, consoante o ponto de vista, faz voar a razão extraordinária. Estava mesmo frio! Só um café, apenas uma chávena quente e eu, ou… Foi assim que cheguei, foi assim que abandonei a catástrofe inerente na curva das sobrancelhas e a outra, a dos lábios, velhacos e mascarados. Sem que fazer, pensei, porque haveria ela de parar ali? Eu já era um vegetal até então! Não havia necessidade de me ter possuído o corpo naquela intensidade húmida e suada onde se me consumiu o resto da vida. Agora tenho as costas doridas sem fazer nada. O pescoço hirto e umas dores que não me deixam mover. Falta-me o sangue nos braços. As pernas tremem, por tudo e por nada. “Adoro-te, também penso muito em ti, tenho imensas saudades tuas mas já não estou apaixonada!” E deixou-me a alma abandonada.

O frio tinha uma razão, o frio dava uma saudade quente das velhas tardes dormentes onde perdia as horas com imagens fictícias das tuas ancas e dos teus seios, a ondular. O frio conservou-me esta imagem erótica, onde mais nenhuma poderia estar. Contigo ao Luar? O frio tolhia-me as mãos e as ideias, tal qual uma garra tétrica em redor do meu pescoço, uma vontade de alguém em me esganar.

Que horas são? Retorno com a missanga etérea da vontade putrefacta do apetecer estrangular alguém. Mas não tenho ninguém. Sinto-me velho. Cansado e usado, passei do prazo, passei do limite em que algo bonito já não persiste. Em mim, há uma força obtusa que resiste perante as melhores coisas que se me deparam pela frente. Não quero crer mas é de um magnetismo inebriante, inconsciente e desalmado. Grita-me aos ouvidos como que a mentalizar-me, “não posso!”. É um gigante, um colosso! Assim fosse para enfrentar os desaires do dia-a-dia. Destes dias que se me acumulam na pele em segundos, minuto após minuto, pesando toneladas, ridículos e estúpidos, que me enxovalham sem querer… impotente, feito trapo… um farrapo.

E a culpa não é do frio, a culpa não é do calor, a culpa não é do tempo! Que culpa? Olho para o calendário e custa-me discernir o número que pertence a este dia. Tanto desejo que eles não aumentem como lhes rogo que se apressem e o próximo que não me trinque de novo o coração. Não vou para longe porque desejo estar perto, não me quedo porque senão adormeço e quero estar desperto. Que faço, então? Mantenho a insónia ou abandono-me nos braços do sono? O sono que me remete aos sonhos da memória de ti, em tudo semelhantes aos pesadelos habitados pela tua recordação.



2008






28 de fevereiro de 2011

RSF*



O céu era uma pintura pálida, uma pintura azul muito pálida, de um azul acinzentado mas muito pálido, combalido, decorado com manchas cinza pálidas, não de chumbo mas brilhantes como chumbo só que não pesadas, não tão pesadas como o chumbo do céu nos dias de trovoada. O céu não era um reflexo nem uma estrada, o céu fora apenas aqueles momentos em que ele o fitara, distraído, uns segundos entre passos, uns minutos depois, quando tinha parado e nada o acompanhava. A brecha entre os pensamentos que tivera até chegar e o que pensava fazer dali para a frente.
Sentiu as chaves na algibeira do casaco, no lado direito, sorriu, a tal que se rompia sempre. Tacteou no bolso esquerdo das calças o isqueiro e o tabaco e lembrou-se de quando a vontade de fumar era incontrolável, não começava a fazer nada sem que acendesse um cigarro. Sorriu. Já passara.
Por mais que me tente a ser como os demais, pensou, não consigo, não sei como ser, não consigo parecer o que não sou. Se quiser, talvez saiba inventar, talvez consiga criar uma personagem, escrever-lhe um guião, marcar-lhe as zonas de palco e delimitar-lhe os movimentos ao lhe delinear as falas, a postura, a colocação da voz e da figura. Tornou a sorrir e entrou no pequeno bar da esquina onde se movimentavam as parcas pessoas que, de passagem, bebiam um café de fugida, curto e forte, ou as que levavam uma sandes ou croissant, frescos, confeccionados de madrugada. As que tomavam o pequeno-almoço atravancando o espaço vinham depois, cerca de uma ou duas horas depois, quando o sol já raiava as oito da manhã. Tomou café e saiu. Atravessou para o outro lado da rua. Esperava.

Empresta-me a tua alma que eu conduzo-te pela mão no interior da minha, empresta-me a tua carne e eu dou-te a minha pele, toda a minha pele, para com ela talhares e cozeres um extraordinário vestido, ou fiares, numa roca prodigiosa, puxares à fieira e depois teceres o mais belo xaile onde te aqueceres e refugiar.
Usa, vá, toma esse teu xaile que é feito de mim e não vais saber mais que eu já sei de ti. Aquece-te, que o frio não é nada. Refugia-te na ideia que te existo mas o fio da minha pele está comigo.

Não mais uma pintura, o céu era apenas uma coisa para lá dos topos dos edifícios velhos, para além dos recortes altos dos edifícios cinzentos e velhos, de um cinzento manchado, carcomido e gasto. O céu agora não interessava nada. Eram os edifícios envenenados pelo chumbo da exaustão dos dias, os séculos de erosão salgada, era o cinzento, aquele cinza doente, desde as frontarias com manchas pálidas, depois mais escuras, amarinhando pelas fachadas mescladas e combalidas, eram aquelas presenças mórbidas e frias que lhe deixavam o olhar sem espaço para mais nada. A brecha entre os pensamentos que o levaram e a fenda da espera, não era o céu, sequer uma estrada.
Acendeu um cigarro e fumou, calmamente, tão calmo que até se estranhou a si mesmo. Parecia que em cada espaço entre inspirar e soltar o fumo lhe batia o coração mais lentamente, num compasso deleitado. A madrugada estava fria e ao ajustar o casaco sentiu a diferença no peso do lado esquerdo, sorriu, tacteou o frio metálico dentro da algibeira, esguio. Era estranho pois nunca tinha andado assim, mas sabia o porquê daqueles minutos que o detinham em demora, aquela espera diferente sem ter obrigações ou compromissos. Era diferente aquela espera. Era diferente estar ali. Um novo magote de gente no passeio defronte. Acabou o cigarro. O semáforo estava vermelho ao trânsito e atravessou calmamente.

Empresta-me a tua alma e eu conduzo-te pela mão ao interior da minha, empresta-me a tua carne e eu dou-te a pele, a minha pele, toda a minha pele para secares e curtires e com ela fazeres o melhor casaco para te iludires, pensares que ficas bonita, por fora, quando não prestas dentro. Um casaco para apertares bem em volta do corpo nesse frio que és e sufocares lá dentro. Aquece-te, que o frio não é nada, conforma-te na ideia que te existo pois o fio da tua vida está exangue.

Por mais que tente, pensou, não consigo ser como os demais, não consigo inventar e parecer-me com o que não sou. Tornou a entrar no pequeno bar onde agora já se acotovelavam pessoas, as que apenas queriam um café rápido misturadas com as que fincavam cotovelos no balcão para criar oportunidade em pedir galões e meias de leite, bolos e sandes aquecidas, tostas mistas, croissants de chocolate, arrufadas com queijo e fiambre. Vira-a entrar. Era a mão dela que esticava o dedo com a unha reluzente, era ela, a pulseira barulhenta com berloques foleiros assim o testemunhava. Com mais ou menos jeito entalou-se entre um fulano gordo e uma velha impaciente atrás dela. Tirou a mão esquerda do bolso onde já tinha aberto a navalha e mais ou menos empurrão espetou-lha nas costas, logo por baixo das costelas. Recuou, lentamente, deixando a vida própria daquele aglomerado ruidoso de gente obstinada em chegar á frente, em entrar, cuspi-lo de volta, para a porta, onde mais gente continuava a chegar, onde ele se encontrou depositado sem esforço pela inércia. Sorriu. Tinha chegado quase ao balcão mas como recuara, parecia que aquela massa informe de seres humanos o rejeitara, aquela amostra de colectivo de humanidade segregara-o com a maior das naturalidades. Tornou a sorrir.
Se ela gritara, era mais uma de tantas outras vozes a gritar isto ou aquilo num pedido impaciente e nervoso, uma observação parva, uma exigência qualquer. Talvez somente reparassem mesmo nela quando caísse, abandonada, tombasse, a estorvar no chão, talvez ainda a mexer ou de olhos arregalados e estáticos mas o corpo a estorvar e a mancha de sangue, lentamente, a sujar os ladrilhos, a alastrar, a estorvar no chão.
Então pensou que, se realmente quisesse, talvez soubesse inventar, talvez conseguisse mesmo criar uma personagem, escrever-lhe um guião, marcar-lhe as zonas de palco e definir-lhe os movimentos ao lhe delinear as falas, a postura, a colocação da voz e da figura. A vida é um palco. A vida é uma questão de rectidão, de postura ou falta dela. A vida é uma sensação, uma questão de tempo, mas mais que uma actuação ela é tudo e tanto, sem ou com senãos.



*(Excerto)
2011

4 de janeiro de 2011

Pormenor de outono




    Dei por mim como árvore e do vento apenas ausência, as folhas do meu outono continuavam presas aos ramos do silêncio. Menos que isto vomitei, menos que dos restos que me faziam agoniar, vomitei, larguei fora, deitei a gritar, abri a boca e saiu um mosto informe e nauseabundo de algo que não eu mas que saiu de mim.

Parou-me a digestão em coisas que nada tinham a ver com alimentos, coisas que em tudo até só tinham a ver contigo, mulher, minha companhia, onde perto, bem perto me sento, abraço, abraças-me também e eu correspondo quase te afogando em beijos.
Vomitei tanto, tanto, minha querida, o que saiu não sabes nem podes sequer formar ideia ou tomar medida. Meu amor, tudo o que foi em nada tem a ver com existires na minha vida.

    Abro os braços ante a janela fechada e sorrio, devia estar aberta. Abro a janela e respiro de braços abertos e sorrio porque chove, não sabia, não fazia a mínima ideia do tempo que acontecia mas queria, apenas queria abrir a janela e ver a rua. Olhar para ela e largar-me de olhos abertos a voar como nos sonhos, caindo, sem parar. Olhar para as coisas lá em baixo e continuar. A voar.


    Dei por mim como árvore e do vento apenas ausência, as folhas do meu outono continuavam presas aos ramos do silêncio.
Com e por ente tanta chuva consegui mesmo assim ficar seco, doente, mas seco. Doente porque a roupa secou no corpo e toda a água que me pareceu evaporar, entranhou. Entranhou-se-me a humidade nas pernas e agora dói-me as canelas, doem-me os ossos de tal forma que até parece que não tenho pele. Parece-me que os músculos não existem pois quando mexo, toco, apalpo, são coisa que não sinto com as mãos, num fincar de dedos são outra coisa, um volume estranho, um espaço que dói.
Quando lhes mexo parece que não toco, a pele, sinto a carne, apenas a minha carne que pesa, parece que me arrasto em quilos que não tenho. Dos olhos e da boca não lhes encontro forma, sinto-os quentes mas não lhes mexo.


    Abro os braços ante a janela fechada e sorrio porque devia estar aberta, aberta porque da última vez não consegui respirar por ela e chovia, a cântaros, chovia tanto tanto, que o que me apetecia era estar de braços abertos e não podia. Não podia estar sem olhar para fora, algures para lá e largar os olhos a voar, para além dos vidros, do caixilho de madeira ressequido e frágil. Não podia, naquela altura sem ver, não conseguia, seguro a isso, não podia, voar.


    Dei por mim como árvore e do vento apenas ausência, as folhas do meu outono continuavam presas aos ramos do silêncio. Dei por mim igual a mim mesmo, como o frio, como a chuva, só que em madrugadas diferentes. O sabor já não era o mesmo de ti comigo, os amanheceres já não retinham aquele cheiro. Os sons tinham o mesmo tamanho, a casa estava cheia connosco mesmo mas o sabor revelava taninos inesperados. Meu amor, o sabor era o paladar da tua ausência.
Os dedos criaram sulcos frios e nas mãos não senti onde tocavam, se em mim, se algures, se em nada. Não sinto mexer calor na minha pele. Com os dedos apalpo, seguro, arranho o ar, pelos dedos encontro até o paladar mas da carne não lhe sei o toque. Os dedos criaram sulcos em redor, agitaram o ar. Nele os desenhos de fumo pelo frio, dos meus dedos, quentes, no gelo do ar.



2010