28 de dezembro de 2010

Até que chegue a madrugada


    Vou aconchegar melhor a gola do pijama, certificar-me que as calças não caem, acho que até vou buscar o xaile que era da minha avó porque logo à noite vou sonambular. Os clarões dos faróis chegam rápidos, iluminam-me a janela do quarto em rectângulos prateados e fogem, um pouco mais lentos do que vieram, pois, é aquela curva defronte, aquele cotovelo perigoso onde por vezes os pneus guinam, resvalam no saibro da berma e guincham ora pela velocidade ora pela perícia aselha dos condutores. Deve estar frio, acho os vidros baços, é a condensação, imagino lá fora, na rua, nuvens de vapor de água em redor das bocas que falam, pés a bater no chão para activar a circulação, sem mais gestos, todos com as mãos bem presas dentro dos bolsos ou escondidas num abraço hirto ao próprio corpo. Só que não oiço ninguém. Talvez os vidros estejam apenas sujos. Agora me lembro que já não recordo a última limpeza. Mais um filete de luz, outro clarão e um longo final sinuoso, outro, e mais um, este era grande, talvez um camião, demorou mais e fez estremecer as vidraças. Não consigo dormir! É melhor apertar bem o pijama, certificar-me de que está bem abotoado, vou também preparar o cobertor de emergência porque logo à noite vou sonambular por aí.

    Por agora aninho-me melhor entre os lençóis e enterro a cabeça na almofada. Os rectângulos iluminados da janela projectam-se na tela do tecto decalcando o candeeiro, passam pelos quadros, provocam as cortinas e fogem de seguida, qualquer rápido ponto nos confins de um canto. E são tantos, não tenho descanso! Mexem na cozinha e a porta surda não se move. Quem será? É a incómoda vizinha do lado a lavar a loiça a estas horas, o filho pedrado a chegar a casa ou o solteirão bêbado do vizinho de baixo desatinando com a fechadura? É o frigorífico que geme como um bebé meio adormecido, estremunhado.

    Arquejo, olho e recordo-te no Verão, tão branca ao sol, espraiando com as ondas, brilhando ao sabor do mar, enterrando o engano dos amores como se nada fosse e lembro, quando o petroleiro derramou e quando o oceano arrotou toneladas de lixo misturado nos cadáveres dos peixes e das algas… não sorrias então. Fiz-me acreditar que era pela calamidade do acidente, sem reparar que, afinal era pela catástrofe sim, mas a que guardavas em segredo no teu peito. Se eu te adivinhasse, veria a minha imagem esborratar-se do teu coração num desvanecer de tinta mal seca sob um aguaceiro temporã. E agora claro que arquejo quando me foges por entre os dedos como o tempo, não sei se te gosto ou se te odeio, és como areia, entre os dedos, sim, sempre a mesma areia intrometida, metida lá mesmo onde não é precisa. Areia na tua cara, que tirei com um gesto despreocupado mas carinhoso, areia debaixo dos pés que não consigo tirar nem por nada e detesto o trincar ruidoso dos meus sapatos de encontro ao chão em cada passo que dou. Areia entre as minhas costas e a roupa, entre os nervos e os ossos, areia no meu pensamento...

    Acho que ontem á noite eras tu a voar em redor dos meus sonhos, mas quando acordei só ecoavam os miados do cio dos gatos e a porcaria dos canos quando os vizinhos de cima puxam o velho autoclismo. O longo arroto malcheiroso da merda dos canos, o ronco fedorento dos sacanas dos canos! Mais uns faróis, um guinar de pneus... porra, este bateu! O baque da chapa contra chapa e vidros partidos na escuridão, palavrão, silêncio, ofensas e discussão, pouco depois um estalo e os pneus tornaram a resvalar, até passou depressa. Sim, deve estar frio, tenho de ter cuidado para não me constipar, talvez seja melhor vestir um pijama mais quente com umas calças grossas, não posso perder o norte aos chinelos porque logo á noite... que raio, quero dormir mas ainda nem sequer adormeci e já sinto a manhã a chegar!?




    Quero agasalhar-me mais mas nem com os lençóis nem o cobertor consigo. A manhã já solta nevoeiro, geme lá longe como um barco perdido ou um comboio que chega. Procuro fechar a janela cerrada na esperança de impedir o frio, se não me mexer muito os ossos não quebram, tento ligar o radiador fundido, “de onde vem este ar gélido?”, pergunto se é um bafo fantasma, “por que raio de greta entra esta faca que me apunhala pelas costas?”. Desejo por tudo que este calafrio sejas tu de novo e que me baste esfregar os braços com as mãos para o conseguir aniquilar, simplesmente. Apesar de não me apanhares a dormir, espero sinceramente que sejas tu a tentares, desejo muito sinceramente que avances e te cortes no arame ferrugento da minha solidão e te infectes!

    “Deixa-me, estás sempre presente, consorte, mas tens ruído, trazes desassossego e já tenho de sobra. Dinheiro, mitologia, sortes, quantas lendas… Talvez não fosse mau mas, larga-me de uma vez por todas, não quero saber nada, prefiro ignorância, deixa-me porque quero silêncio, vácuo, mesmo vazio e não te escondo o enfado. Estou nervoso, inquieto, inseguro, tenho uma necessidade recalcada de afirmação que preciso satisfazer e só te oiço dizer, “nada disso é importante”, e o mundo a desdenhar. Só prejudico e prejudico-me: mas será que tenho de a deixar morrer? Menos um pouco do meu ser, ou de nada, ou de coisa nenhuma. Estou perdido, não tenho casa. Sofro demasiadas pressões e encaixo-as: torno-me agressivo e toda a calma necessária ao pensamento esvai-se, como fumo ao vento, deixando-me equilibrado no arame ao longe, de olhos vendados por mim próprio com duas soluções, qual delas a pior, de ficar calado e vir a perder por inacção ou falar e perder por precipitação.”

    Doce cama, doce cama, terna sedução irresistível; sonâmbulo, o vento canta, a noite pintou de estrelas o tecto do quarto e tenho sede. Maldito silêncio! Já me oiço demais, tenho receio de perder um qualquer momento que me possa escapar da tua volátil presença; no entanto, com o nariz entupido, também não te consigo respirar a alma! Embrulho-me todo na roupa, ainda estou deitado afinal, está frio; serão os teus dedos a sangrar? Todo eu me encolho, sufoco, tentando fugir da escuridão… Finalmente, as luzes começam lentamente a se apagar.



15 de dezembro de 2010

Nunca Palavras




    Desde que me olhei e me voltei a ver, de novo olhei, de novo me vi, voltei. De novo. Com ou sem peso, de novo encontrei o que afinal não tinha perdido, com ou sem peso olhei e vi, que sabia que estava vivo, que sabia que estava mas sempre com vontade de já ter ido. Então fiquei.
Desde que me olhei, reparei que desde que foste, tantas outras pessoas também já tinham ido da minha vida e eu continuava vivo. Desde que foste, pensei, o que te demorou tanto a ir, pois continuo vivo? Que foi que demorou tanto a magoar e a moer o que já podia ter sido? Então continuei.

    Cicatrizes não são tatuagens, cicatrizes são muito que já foi e agora apenas marcas, pegadas do tempo, inscrições talvez, mas apenas garatujas e nunca palavras.
As palavras são de quem escreve ou fala, as palavras são de quem e não nunca de como fazer sem dizer nada. Os gestos deixam marcas mas são atitudes, são vento, são vultos, sombras, areia, sedas ou escarpas. As palavras são desenhos, frágeis, delicados e cuidadosos, as palavras são linhas de letras com som e quem apenas pensa que as sabe ou sente mas não ouve, tanto sufoca como mata.
Quem não se ouve não sente as cicatrizes que causa. Tudo o que escreva ou diga pode parecer garatujas, mas certamente nunca palavras.