10 de novembro de 2010

Nada é nada, antes do momento de ser alguma coisa…


    Tomás recordou do tempo, no tempo a borrasca de uma vida grande, intensa, contada em muitos dias de matemática, tão verde como seca, doce e amarga. Do tempo, as lições e as frases que definiam momentos, lições que não acreditava serem realidade e apenas tiradas de vida, usual, ditos e factos corriqueiros, dum dia-a-dia banal, apenas coisas boas para serem escritas, não boas coisas para serem postas em prática, na prática do dia, todos os dias. Antes, quando: deixei de sair para ir ao convite do meu amigo, não foste comigo porque não quiseste, não querias nada e eu não fui, fiquei em casa, fiquei contigo em casa e o tempo gastou-se sem que me dirigisses palavra a não ser para perguntares se estava chateado, apoquentado por não ter saído, se estava aborrecido, e se estava, antes devesse ter ido.
    Emília retinha um sorriso irónico mas não lhe dava a saber o porquê daquele querer, daquele inusitado impulso que a tomava, sem saber, aparentemente sem saber, oculto o porquê, oculto, talvez, mas de gesto brusco, o impulso, instintivo, sem querer.
    Ele fitou-a, calado no espanto, fitou-a naquele dia, daquela vez, calado, como em tantos outros dias o fez, calado, tantas vezes. Lembrou-se que tinha argumentado, lembrou-se de o fazer, como de outras vezes não fez. Lembrou-se que depois pensava nas razões e que argumentava, fundamentos, depois, depois deixou de o fazer, pois tinha sempre razão e ela não; depois ela passou a ser sem razão, só por ser, a falar sem assunto, a falar de outros assuntos, falando de outras razões. A vida atabalhoou-se. A vida, mesmo rotina, ficou atarantada, a vida mesmo certa e rotineira, tornou-se atabalhoada.



    Tomás ouviu, como se ouvisse uma balada triste, o vento que parecia de novo bater nas vidraças como a chuva, antes, nos Invernos da desgraça, como antes, nos Outonos da solidão gigante que tolhe e esmaga. Antes, quando: gritei-te o nome de encontro ao céu negro e apenas recebi de volta o esgar trocista e irónico da lua, nada de melodias suaves no meu peito abrasado, nada de sons calmantes ou esperanças de gestos adequados, só halos, vagos, respostas nulas e apenas mais e mais esboços de labirintos gastos. Por mais que tente ou não, por menos que deixe, ou não, deixar tornou-se um mito de Sísifo, uma realidade crua de falta de bom senso. Deixar foi um erro, porque amar-te foi um querer, um desejo, amar-te foi para mim respeitar toda tu até ao mais ínfimo ensejo, e eu não soube acreditar que por mais que regasse a flor, tu foste arbusto, sedento, tu foste voraz em consumir o espaço que nunca apertei, não tolhi nem condicionei, sempre quis fértil, pois sempre o quis largo e vasto. Sempre quis, sempre quis, desde os momentos de aflição e aperto em que sempre nos abraçámos, abraçámos a vida para a frente, sempre, até nos teus momentos exclusos em que te via a chorar eu te abraçava, perguntar não perguntava pois não me respondias, nada, e ficava noite fora, acordado, a velar o teu sono, acordado no teu dormir descansado, a descansar a noite em mim porque dormias apaziguada.
    Tomás sentia o fundo de si revolver-se, não com mágoa, mas revolvia-se dentro dele a lembrança de muitas e muitas noites acordadas, muitas das suas noites que não tinham olhos, cegas, surdas e mudas, perdidas e solitárias, doridas; as noites em que lhe teria sido bom apenas um beijo terno, um beijo singelo, um beijo apenas beijo, um beijo, apenas, um beijo para o acompanhar.
    Ela recebia-o, não como antes num abraço e até um beijo, mas sim agora, todos os dias, sem sorrisos, sempre com perguntas: onde foste, porque demoraste tanto tempo, onde estiveste, porque vieste tão tarde. E ele, que tarde não vinha, sabia, não sabia do tempo pois não estava em falta, nada faltava, ele, sentiu o tempo pesar, sabia e não sabia mas começou a sentir, realmente o tempo, o tempo a passar.



    Tomás lembrou-se das manhãs em que acreditar até ameaçava lhe faltar no vocabulário, uma lacuna, acreditar era quase um espaço em branco, acreditar era uma planta seca, que, esmagada, deixava aroma, nos dedos, agradável, permanecia-lhe na ponta dos dedos mas desaparecia depois das mãos lavadas. Manhãs em que lhe custava o caminhar, pesavam os passos, pesavam os pensamentos, pesava o acordar dos dias, custava-lhe o sol, as nuvens, o céu, pesava o ar. Seguia um caminho estafado e vazio, carregado de entulho, pejado de quotidiano, temperado aqui e ali com apontamentos perfumados, ténues laivos, pontos brilhantes que escureciam na sombra das horas, depois no dia, desapareciam na esquina dos gestos, aromas ténues, ao correr do dia, diluídos em menos de nada após lavar as mãos. Cada tarde de cada dia apenas era uma soma até a noite chegar, cada manhã que lhe passava, somava a conta vexada de mais uma tarde até soar a hora em que regressava, subtraído, para encontrar não um par de mãos abertas mas uns braços cruzados. Por cada manhã de cada tarde com cada noite, cada alvorecer entardecia uma escuridão; cada manhã de cada tarde com cada noite, produziam-lhe os dias, aqueles dias asmáticos, os seus dias, consumidos em senãos. Acreditar, tornou-se uma lacuna no seu vocabulário, acreditar, foi mais um espaço em branco nos dias, acreditar, mais uma frincha por onde escapava a vida, mais uma falta. Passou a tomar o caminho mais longo para casa.
    Não era o calor do amor que o esperava, o calor do aconchego, não era o aroma terno e morno do carinho que o aguardava. Emília destilava amargura, ela ruminava rancor e na alma ia avivando uma mancha escura onde antes lhe habitou a ternura.



(excerto de "O Dia que parecia não era já dia") - 2010

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