6 de novembro de 2010

Lá também




Estrelas mergulham por detrás do céu, este céu obtuso e crispado, entrecortado por brechas de claridade sopradas pelo vento que arrasta o chumbo das nuvens. A estrada fica perigosamente molhada apesar de reflectir toda e qualquer luz que por ela passe. A estrada fica demasiado nítida em frente, por baixo dos pés.
Mergulham os pensamentos na figura que se desvanece à medida que se afasta para a linha do horizonte. Apenas sim, apenas porque sim, se fosse a ti, eu não imaginaria nada a não ser apenas aquilo que o coração vê, aquilo que nos olhos se sente.
Mais ninguém faz como tal, que deveria ter sido feito, resmungam porquês, refilam arrependimentos e sopram baforadas de sufoco, desabafo, ventos cardíacos, sublimados de antemão. Olhos que não vêm, coração que não sente. Dizem. Constantemente.
Devem passar estrelas do outro lado desta cortina densa e pesada de nuvens como chumbo, entre esta camada e o céu infinito que desdenha pelo sol cadente, mortiço, agora que se põe para lá dos cumes. A estrada molhada fica perigosamente perto dos olhos porque reflecte mais do que realmente se vê. A estrada começa a ficar drasticamente mais estreita, mais definida mas mais fina.
Choveu tanto que o som da rua se confunde com as lágrimas dos beirais e as passadas agrestes e rápidas dos obstinados. Ao redor há um vórtice de sensações que cheiram a terra tapada com fuligem, a fuligem dos dias, aquele pó escuro, fino e pesado, que entope todo e qualquer buraco, orifício, mesmo que abstracto, onde estás, onde estamos, onde residem os marasmos, onde suspiram as revoltas sedentárias carpindo saudade pelas estepes.
Até o cheiro é pesado, até os gestos, apesar de cansados, redobram o seu peso em quilos de tristeza ao ir e dor no estar. Este cheiro não ficará leve mesmo quando o vento soprar, este sabor desnudo não será nunca adocicado desde que as palavras sempre sirvam para magoar. A humidade dos dias entranha-se nos ossos da vida e entope qualquer avenida.
Estrelas mergulham por detrás do céu e as baforadas de sufoco, os desabafos, ventos cardíacos, são meros espaços dentro dos momentos parcos. Os momentos escassos onde as rotinas proliferam escavando as nossas próprias sepulturas. A estrada fica perigosamente estreita e molhada, a via é então quase opaca, deturpada pela fuligem dos anos, empedernida pela humidade lenta e pesarosa dos minutos, das horas, das revoltas estúpidas e sedentárias do dia-a-dia. Reparem nas manchas de humidade sobre a cal dos dias, reparem na lama fina mas barrenta que salpica os pés na caminhada dos sentidos. Meses ásperos que se entornam, espessos, pelos anos que derrubam os escassos movimentos sem cruz, amordaçam os parcos instantes de que são feitos os sonhos e as esperanças de luz.
Por esse mundo fora devem existir tantos seres que não são parecidos mas que porventura poderão sentir de modo semelhante. Para lá das árvores a lua também desponta ou se esconde. Lá, algures, mesmo do outro lado do mundo, também as estrelas mergulham atrás da camada de nuvens, pesada como chumbo, que tapa o céu em chuva e torna o caminho opaco de lama. Lá também o sol desponta depois de mais uma noite, durante mais uma qualquer madrugada.

2009

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