9 de novembro de 2010

Excertos



Cheirava mal, as valetas estavam atulhadas de porcaria, as sarjetas entupidas tresandavam a podre e a água que escorria ou pingava dos algerozes desenhava mucos verdes nas paredes. Podia-se escorregar tanto no musgo das vielas como na lama das travessas. Mas aquele cheiro nunca mais ele sentiu ao passar naquelas mesmas ruelas, siderado com as recordações, cambaleando abstracções, desejando recortar a memória em pequenos cromos de colar para sempre na caderneta da arrecadação, “só queria conseguir lá pôr tudo, em prateleiras ou não, e fechar a porta sem mais senãos!”.


Deixou-se tombar no chão e para lá adormeceu de janela aberta aos ventos nocturnos, “janela maldita que fustigou a noite toda, constantemente, batendo o compasso do meu sono revolto de tolo acorrentado a um sonho místico”, ao acordar foi como se não tivesse dormido e se dormiu não notou, “estou enregelado, bolas, não morri nem nada, ainda aqui estou”, queria uma fuga fácil, um milagre, “que bom se fosse pesadelo que terminasse ao acordar...”, pois não adiantou nunca forçar-se para entender as atitudes dos outros quando nem conseguia entender as suas, “e assim fui a vogar no negrume brumoso das enxaquecas”, nem agora interessa já tentar, em nada adianta perceber o porquê das acções dos outros, “agora, aguardo a altura certa, o abrir do casulo com a ajuda das minhas patas de borboleta”.


Qual borboleta qual quê, o lodo começava a adensar-se, “as algas já me sobem pelos joelhos e nem nadar sei neste charco de água barrenta, água de sarjeta da minha vida pantanosa de órfão do mundo”, pobre coitado, “pobre uma porra, não quero nem piedade nem esmola, nada disso, deixem isso para os crentes”, especialmente aos falsos, aos pavões hipócritas, idiotas que vão para a igreja espojarem-se desfraldando as caudas perfumadas e que nunca pela bíblia passaram os olhos sequer, “não quero misericórdias ocas pregadas por padres fingidores, falsos poetas em sermões confrangedores, não, não quero mãos estendidas em ajuda ou erguidas em prece, as mesmas que batem, desferem chapadas esperando verem-me oferecer a outra face!”


Ao abocanhar a vida em quentes noites de Verão e outras tantas tardes iguais cheias de utopia, nunca pensou que algum dia estaria a pensar assim, em mais um malogrado Domingo, “hoje estás...”, nem um sorriso, “sei lá, é estranho”, dá em que pensar, “bastante, parece que somos estranhos um para o outro...”, belos tempos apesar de tudo, “bolas, mas não me amas?”, e os dois choravam, contemplando-se mutuamente, sussurrando “amor”, baixinho, com as bocas fechadas num beijo, olhares cegos e carícias mudas em noites ternas, “amo-te”, ao ouvido, “sim, tanto!”, e, “não te esquecerei enquanto viver”, e, “pois se o viver tem razão, és tu, amor”, pois morre ou mata, “diga eu não, não quero ou não consigo, diga eu, a maior diferença entre tu e eu, amor, digo eu digo eu, é ser traído!”.


-Um Parvo do Caraças- 1984/89

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