25 de outubro de 2010

De noite, a lua...



Acordar numa manhã qualquer de uma cidade estúpida,
esticar o braço e tactear o espaço ao lado
…vazio.
Nem morno… frio.
Tinhas ido.
Mesmo estremunhado ainda te sentia na pele,
ainda saboreava na boca o rasto dos teus beijos
…pairava por todo eu o odor do nosso amor finalmente conseguido.
Tornei a esticar o braço e a tactear o espaço a meu lado
…vazio de ti.
Arrepanhei os lençóis numa ridícula esperança de tornar a segurar-te
entre os braços
num abraço,
sentir-te nos dedos a derreter de prazer,
esquecendo o vazio,
perdida em mim como eu dentro de ti.
Sentir-te os olhos e o sorriso
que me fez não mais estar desgarrado.
Abandonado, sim…
mas já não triste.
Apenas arrependido por ter acordado.




A luz estava onde o sol estava, a luz era mesmo a do sol, a luz era o calor que o fizera acordar, era mesmo o sol, a luz do sol que o incomodara mas não estava chateado, apenas arrependido por ter acordado. Lembrou:

Tornei a esticar o braço e a tactear o espaço a meu lado, vazio de ti. Arrepanhei os lençóis numa ridícula esperança de tornar a segurar-te entre os braços, num abraço, sentir-te nos dedos a derreter de prazer, esquecendo o vazio…

Nada tinha que supor enquanto o dia não clareasse, nada tinha que saber antes que fosse agora, já, agora altura para qualquer coisa. E era de noite, afinal, era ainda de noite, agora era altura de estar, mais nada, afinal agora ainda era apenas quase madrugada, mas nada clareava, nada sucedia, nada acontecia, tudo estava prestes mas nada decorria enquanto ele sonhava.
A luz não era do dia, a luz não era nada, a luz que o incomodava não era mais que um ruído, pareciam gotas, pingos de encontro ás vidraças, cristais de luz do céu, era esse ruído que luzia e o tinha acordado. Pensava. A luz estava onde o sol estava e ali era a lua que o espreitava, era ainda de noite, a luz da lua, eram ainda apenas os pequenos laivos moles da madrugada.

E em vez de te sentir nos dedos, perdida em mim como eu dentro de ti, foi mesmo arrepanhar os lençóis, qualquer espaço defronte, ao lado, foi mesmo não te ver mais.

Afinal a luz estava onde o sol deveria estar, afinal a luz fora mesmo o que o acordara: choveu tanto que mesmo que o dia clareasse e o calor fosse realmente aquilo que o fizesse despertar, nada o incomodava apesar do sonho, não estava chateado, apenas arrependido por ter acordado, realmente, apenas arrependido por ter aberto os olhos e não ser o poema que tinha sonhado, não ser o sonho a verdade que agora tinha depois de ter despertado.




Choveu tanto que me deixo a ver as gotas tuas, as gotas nulas de uma e mais outra frase crua, mais e menos coisas que pingam como as gotas, da chuva, não que nada mais de água, mais ou menos que jogos líquidos, truques parcos, menos que um bater de coração; não tens nem queres, discernimento, procuras e dão, sim que te dão ajuda e consolação.
Choveu tanto que me deixo a ver as gotas nuas, as gotas na vidraça fria, os desenhos que o vento faz nelas e nas coisas que pingam como as gotas, da chuva, não mais que água; mais ou menos as tuas idas e vindas, mais ou menos os teus gestos e as palavras, os movimentos do cinzel que lapidou os dias, teus e meus, os dias, como a terra aberta em rasgos de enxada.
Choveu tanto que me deito agora a ver as tuas gotas pingando na minha vida, as gotas brutas, outrora lindas, as gotas tuas, olhares e sorrisos, mais e menos coisas que agora pingam do lado de fora como as gotas da chuva, não mais que água, não mais que líquido a desenhar motivos, quais garatujas empoeiradas.
Choveu sim, choveu e agora deitado vejo as tuas gotas, as gotas que pingaram a minha vida, as gotas bonitas, as gotas quentes e sentidas, agora frias, agora rudes e cruas, as gotas tuas, agora nada mais que desenhos líquidos, marcas, fustigos, do vento, o vento a escrever com a chuva, do lado de fora, no vidro sujo da janela empoeirada.




No vidro sujo da janela empoeirada, perante a lua, nada vale de encontro á luz que empalidece a vontade. Nada está mais opaco que o vidro do meu ser. Nada amadurece sem luz, jamais.
...e forma-se na sombra da luz o contorno do abandono. O sabor amargo que dói no peito e desce salgado, lentamente, pela face.




“Apesar de me amares sinto que me sobras”, disse ela entre dentes, “bolas, queres que faça o quê”, franziu ele o cenho e depois cuspiu, dizendo, “a minha vida não é contigo, a minha vida ainda está por definir”

Catedrais de nuvens abatem-se sobre a minha cabeça, daqui a pouco deve ficar frio, mas entretanto não o sinto, apenas a luz diminui, talvez espere até que o sol desapareça.

As manchas no lençol são do sol, pela vidraça, filtrados por entre as persianas plácidas. Falar não pode, sentir não consegue; enquanto foi tudo o que eras, morri até de vontade, agora sou qualquer coisa e tudo acaba, mais além, perante a lua. Errado.




Branco entre uma noite e dias, estes dias de susto por hiatos e estúpidos pedaços de nada, graves e agudos em sons ocultos, abafados, sons ocultados, oprimidos e amordaçados. Horríveis sucos acres de má vontade, venenos inodoros e letais. Branco de caos aparente como nada, como tudo, sons mudos, propositadamente dirigidos ao tumulto, sons sem palavras, sequer ruídos. Vácuo aparente, torpe e sonolento perfume desagradável do sangue apodrecido e díspar. Branco entre o toque e o impacto, branco de cores secretas e por demais explosivas.

Postas de lodo entre as gengivas e os dentes num grito sem retorno, num grito fedorento pela garganta opaca, inchada e áspera, intumescida, turva e apodrecida no lodo das palavras não ditas.
Bostas nauseabundas de sorrisos imitados e falsas atitudes de mesquinhez e bondade abrupta, falsa, falsa e ridícula, abrupta e falsa e por demais ridícula. Lodo informe nas cavidades mais recônditas da boca que não consegue mexer a língua para articular palavra.
Postas de lodo entre as gengivas e os dentes numa ridícula e desesperada criação de borrasca. Palavras torpes, palavras torpes e escusadas.

Camadas de barro inerte onde apodrecem carnes vivas de sangue entre lâminas cravadas nas unhas dos dedos, de todos os dedos, das mãos e dos pés, entre a carne e o osso das unhas, todas as unhas do corpo.
Camadas de terra informe pespontadas de branco, o falso branco de marfim, baço, o branco acinzentado das carcaças ressequidas, carcomidas e aprisionadas. Nuas condenadas, despojadas, descarnadas pelos abutres, comidas pelo remorso e os seus vermes, pelos abutres e os vermes e as lombrigas do ódio, o ódio do despeito, a raiva predadora… parasita informe da felicidade.

Branco entre uma noite e outros tantos dias, de tantas noites sem dormir, sem o serem, noites, que depois serviam de catalisador para os dias, para os pedaços dos dias em que sucos acres de má vontade, venenos inodoros e letais subscreviam mais de metade da vida. Da vida como devia, como devia ser um amplexo e um beijo de madrugada, como deveria ser um beijo, um mero beijo de olá ou despedida. Um beijo de olhar e ver a vida.

...e forma-se na sombra da luz o contorno do abandono. O sabor amargo que dói no peito e desce salgado, lentamente, pela face.




Tenho as mãos, as tuas mãos, tenho as mãos, as tuas e as minhas mãos aqui no corpo, o teu, sedoso, o meu, sequioso, corpo, tenho e tu, no meu vais tendo. As mãos? Os dedos?
Sei lá o que vamos tendo se o que sentimos é para lá do que somos e o sentir, mesmo, é por demais para cá de nós, e longe, fora, para lá do compreensível do que somos.
Na esperança de tudo e nada que nenhum de nós tem e acredita que existe, somos, as palavras, somos os sorrisos e o que eu e tu calamos sem dizer pois já tudo está dito, somos, pois tudo já o está antes de ser pensado, dito, falado, tudo abafa as palavras e os gestos são de volúpia e compota, de morango ou doutros frutos vermelhos, de chocolate quente pingado sobre o gelado das nossas mentes. Vamos tendo, nos corpos, as mãos e os segredos.
Se penso em ti a madrugada tem mais luz que a melhor das cores que um arco-íris poderá ter, mais cores de a luz que um caleidoscópio poderá conter. Se em ti a madrugada me está apensa devido ao sol-pôr do dia anterior, que mais cores poderei sorrir ao ver-te? Obsoletas são as tardes, esses pedaços entre o começo e o fim dos dias que passam por nós e onde me fixo de ti os sabores, o cheiro das curvas do teu corpo e as cores, as cores do teu gesto nos movimentos do brilho dos teus olhos, meu sorriso, teu amor.
Que temos ou vamos tendo? Aqui ou não, aqui, ontem, agora ou depois, que temos tido? No teu corpo de luz e com aquele cheiro que até com ele tu te surpreendes quando estás comigo, que temos tido? Aqui na suavidade dos cheiros que se misturam até na língua, até sobre e por baixo da língua, que temos? Temos tido a esperança e não nunca a certeza de ter, a presença e não nunca a posteridade.
Tenho nas mãos, as tuas mãos, as minhas mãos nas tuas e nas nossas, as mãos que temos partilhado, sentido e trocado, trocado os sentidos, dado e sentido a pele das mãos que temos imbuído de significado e jogado sem estratégia, num jogo cúmplice mas inocente, não denso, em nada opaco, um jogo sem limites que nenhum se lembra ter perdido pois foi sempre tudo ganho.
As tuas minhas mãos são, não sendo, palavras, e mais te digo, menos me falas, quando de palavras o caminho de longo não tinha nada, escrito na fachada, pingando gotas das letras, ainda frescas, a pingar a escrita oferecida e gravada a quente no momento de improviso, na emoção das frases. Vamos tendo nos corpos, as mãos, os segredos, vamos tendo, sequiosos, nas tuas e minhas mãos, tudo e mais nada que esboços.




No final do diário de bordo, o comandante escreveu algo como isto:

“O navio fantasma da minha vida assombra-me os dias. Olho em redor em busca do farol sem querer fitar o sol pois me doem os olhos de tanto perscrutar o horizonte pelo meu óculo, sinto-o na pele e o seu calor é apenas isso, nada mais do que acredito....
Isto é meu, digo... e reflicto: que posso eu dizer do que é meu?
Todos andam em busca de algo, qualquer coisa que os mude ou complete, guie ou realmente ilumine, realize e preencha. E que tenho eu, para além de mim? Será que se deixar de acreditar, tudo se vai e nada encontro mais? Terei tudo menos o que realmente me faz falta e preciso? O que é então real? Decerto o que sinto, pois sei que existo.
O navio fantasma da minha vida atenta-me as horas. Respondo-lhe que é bem capaz de tudo ser uma questão de fé, a vontade como agarro e a gana com que me seguro. Mas o que será que acontece se de repente me sentir farto e cansado? Se por momentos me sentir sem forças, derreado, será que alguém fica por aqui, perto de mim? Virá ao meu encontro? Talvez me torne seco e vazio como um velho odre, tactearei então o espaço a meu lado e nada encontrarei com os dedos, sequer o breve inspirar de um cheiro... ou na pele, um calor ligeiro.
O navio fantasma da minha vida assombra-me os dias e eu afasto-o com todas as forças que tenho, até as que pensava já não ter ou conseguir achar de novo... Insulto-o, até gracejo, mas intimamente fico amedrontado e peço ao universo que não me apague a centelha... sim que me sopre o vento atiçando-me o fogo para sempre reacender uma fogueira.”




Meu amor, meu amor, que de mim encontro o que sinto neste olhar profundo quando me lembro e recordo que tu, meu amor, meu amor deixado, me deste a provar o chão de pedra, a poeira dos factos, o áspero das lajes do chão empoeirado pelas inércias desajeitadas, pelas rudes perguntas com que os dias foram manipulados.
Meu amor, meu amor, como é difícil limpar esta camada putrefacta que sobre mim criaste, que sobre mim, amputado, tento sacudir e não consigo, tento aguar e não acho forma de a libertar da pele sem agravo.
Bizarra esta maneira como vejo o chão, tão perto, tão longe e tão compacto, tão perto e ao mesmo tempo tão longe, esparso, feito de um tempo passado, feito não de areia e água, mas de uma qualquer matéria onde deixaste o teu veneno e agora toda ela esboroa e morre devagar, declina, apodrece e vai.

Era costume deixar um beijo na tua face mesmo que ela estivesse crispada, mesmo que ela, sempre fria, me desse todos e mais alguns sinais de que algo de mim já dentro de ti não restava. E depois a lua mudava e depois tu voltavas e até falavas. Eu… continuava embriagado em acreditar. Vezes sem conta, vezes e vezes, a somar sem dar conta, vezes sem mais. Tantas vezes… vezes demais.
Bizarra esta forma agora como acho que o chão é, não difuso, não tão áspero e carcomido como os meus carinhos eram na tua pele, não como a minha carecia e morria de saudade pelo toque dos teus dedos, pelo simples toque da tua mão na minha, um puro e simples gesto dos teus nos meus dedos, sequer um sorriso para os meus olhos, uma ou outra fugaz ternura na simples entoação de uma frase.

Meu amor, meu amor, que de ti eu apodreci sem dar conta e comi, não o pão, mas a carne de mim, as vísceras, o coração.

E largo-me em presença, largo-me em ausência, deixo-me ir em voo de suspiros feito, de tantas frases encontradas nos cantos da minha casa, nos recantos empoeirados da mente da minha casa. Por demais a tua face, por demais as gretas entre o que eu chamei de amor e tu não nunca mo provaste, não nunca sequer disseste, depois, antes ou durante, nem nas gretas do ser que detinhas e era eu. Eu. Eu na fissura, eu na brecha, eu naquelas rachas que atormentaram a parede da vida de nós em desenhos perigosos.
Largo-me sabendo que no chão nada reside a não ser qualquer coisa espezinhada semelhante a um coração.

Não é parte de mim a criação de hiatos num modo difuso e onde acabas sorrindo ironicamente, chamando-me nomes, alcunhando-me de tudo o que te faça mais leve e eu mais culpado. Nunca será suficiente o que desejas que eu não tenha enquanto não fores realmente tu para ti mesma. Eu. Eu apenas quero ser feliz, eu quero respirar tranquilo de vida, eu quero ser-me. Quero que o chão brilhe tanto como o céu, quero que nele nada reste de antipatia ou amargura, quero ver nele apenas o que ele é: aquilo onde caminhamos, aquilo onde vamos pondo os pés.
Largo-me, sabendo que de cada vez que o olho e vejo, não entendo, pois já não me preocupo em descortinar se é tua ou minha, esta ou aquela mancha ali, esmagada no chão.




Largo-me, sabendo que de cada vez que olho o chão vejo, não entendo, mas vejo, pois já não me preocupo em descortinar se é tua ou minha, esta ou aquela mancha ali, esmagada nele, no chão, onde tudo aquilo em que me preocupo, tudo aquilo em que gasto o tempo em me preocupar, acredito que seja mesmo a melhor forma de consideração no modo como a dor que dia-a-dia me infliges me faça ver e olhar, olhar e ver, pois de sentir já me basta tanto e estou farto e desgastado, e é por demais uma falta de respeito, uma ausência de consideração.
A importância que de mim vai para ti é apenas um pedaço avulso, um reflexo esparso mas sempre um anúncio e apenas um indício.Tens belas formas de me dar a superfície, a patine lustrosa das nuances deliciosas que me adoçam os gestos e me cativam na alma mas nada está assim tão definido. São apenas indícios.




Tens belas formas de me dar a superfície, a patine lustrosa das nuances deliciosas que me adoçam os gestos e me cativam na alma. Vizinha do meu limbo, creio que em todas as letras que se me unem aos ouvidos eu largo papéis, todos os papéis que junto, os papéis de rascunho onde garatujo palavras. As palavras que lavro para que não soem apenas pelo ar, meros sons, e voem, pelo ar, soltas ao vento, levadas por ele, meros sons voando livres que se dissipam com os dias. As palavras que lavro em papel não para as aprisionar mas para que não abalem, para que não sejam diluídas na água dos tempos.
Tens belas tecelagens de contornos suaves e outros tantos agrestes e audazes, alquimia sem tintas dentro da moldura com que me encaixilhas; te apraz segurar em quadro este pedaço que amparo. Pedaço que mostro quando estou desaustinado, pedaço que, aposto, não imaginavas eu ter, pedaço que absorveste antes do te mostrar e julgaste ténue, mortiço, e afinal tenho iluminado. Essa tua moldura não tem a medida do meu quadro; repara que esse caixilho está quebrado.
Mas as luzes enganam, acorda, acorda agora, acorda já, as luzes contrastam mas também suavizam e confundem. Acorda, acorda já, as luzes tanto ferem a vista como, difusas, misturam contornos, misturam imagens e criam reflexos, sonhos e miragens.
As luzes enganam mais que o escuro, os brilhos ofuscam e embriagam mas também no escuro os brilhos definem imagens. Acorda, acorda já para a noite que se faz tarde onde o dia urge acontecer sem que me deixes sem medo, sem pudor, sem que sofra, sem dor.
Tens belas formas desenhadas ante as minhas garatujas no papel, este papel que lavro para que as palavras fiquem e o que eu digo perdure, tens autênticas tecelagens maravilhosas de poema e verso, tens conversa para me deixar de rastos. Tens a luz que afaga a superfície desta tela mas a tua moldura não tem a medida deste quadro. Á força e não com jeito tentaste encaixilhar um mundo que não é deste reino. Pára. Respira. Sossega, não penses, não faças nada, apenas pára e sossega. Repara que a tua moldura está quebrada.

Não escrevas por minha causa, não escrevas por causa de mim…
Não me escrevas, meu amor, das tuas palavras sei as letras de cor, pois as tuas palavras estão-me por demais presentes, as palavras e todo o teu ser. Não te suponho, conjecturo ou adivinho, apenas sei.
Não me escrevas a dizer, não me soletres o que achas que não entendo pois das tuas palavras eu te sei as frases e o diálogo, até os silêncios, de cor e salteado.
Não te atrevas a dizer o que não sei pois não tens noção de como sou, não me sabes o segredo. Escreve sem dizer, fala sem palavras no que te oiço num olhar, suspira-me um beijo, grita-me um sorriso, fala no que te desejo sem sequer o murmurar. Vê se és capaz.

Não escrevas por minha causa, meu amor, não escrevas por causa de mim…
Não hesites em me contrariar se te perdoo o mau estar, surpreende-me sem surpresas, dá-me espanto e não sustos, não me devolvas o que sou, responde-me contigo sem qualquer esforço de o seres. Não te suponho, conjecturo ou adivinho; apenas sei.
Não me escrevas apenas para não te calares, não me soletres o que achas que sabes de mim quando eu sei que, de ti, todas as palavras e frases por vezes são monólogo, e dele, até os silêncios eu sei de cor e salteado.
Responde-me sequer sem eu te perguntar a tudo o que sequer nunca imaginei vir um dia a dizer. Vê se és capaz.

Pego na mesma entrada onde me fiz sair e, pego em mim, pego em ti, pego no que acho que sentias aqui. Despego dentro de mim o que acho de ti, o que acreditava que tinhas em luminescência. Despego então isto que está agarrado aos movimentos que não faço, aos movimentos que quero fazer e não consigo, aos gestos que tento e atraso.
Esconde essas letras e suspira-me um espaço.
Pego nas poucas frases que entre os monólogos violentos me detiveram e sinto, na palma das mãos sinto, na polpa da minha pele eu ainda sinto, quando acreditado, sinto o quanto é fácil deixar uma vaga destruir esta praia.
Não te escrevo frases, não te escrevo mais nada. Não te quero sequer ler para que nada que diga se fique por silêncios e atitudes esperadas. Não te quero sequer ler para que nada que possa vir a ser tentado escrever fique implícito ou preso numa qualquer tua escarpa. Não espero encontrar mais vezes esta palavra, esta palavra de três letras, esta palavra não, esta palavra a contrariar as três letras de outra, a que mostra o que sou: A de tinta invisível que perturba o papel e que está amachucada no chão.
Não me quero mais apanhado em meras pontuações de textos acreditados.
Olha para mim, agora, fita-me bem nos olhos, repara agora bem em mim, fita-me bem dentro dos meus olhos e diz. Ou cala-te. Pois despego-me bem dentro do que luz e apago a intenção.
Esconde essas letras e suspira-me um espaço, não me quero mais apanhado em meras pontuações de textos acreditados. Forma-se na sombra da luz o contorno do abandono. O sabor amargo que dói no peito e desce salgado, lentamente, pela face.
Olha para mim, fita-me bem nos olhos, observa agora bem dentro dos meus olhos e repara que me despego facilmente do que parece luz e não é e reconheço, mais que bem, a falsa hipócrita tenção. Essa tua moldura não tem a medida do meu quadro, repara que esse caixilho está quebrado.




Algo enche as sombras que me acompanham, algo me preenche.
A sombra é minha, apenas uma, as outras são da vida. O mundo visível resume-se em cores primárias e tantas mais, quantas mais, tantas outras elas fazem, sombra e cores, e todas são vida.
Não me escrevas os sonhos nem o passado.
Se me descreveres o presente, sempre te posso dizer o que está certo ou o que poderá estar errado.
Volto á noite em um mais querer de sol.
Volto para a lua em reflexos e as gotas doces que me caem na fronte são de água, apenas chuva, mais nada.




Um vento abriu o horizonte, ao longe, varreu o que restava no chão e a poeira subiu, areia subiu, da terra subiu uma tremenda nuvem de pó que atirou as imagens para trás da pele e, na pele, correram riscos que sangraram, deslizaram em marcas dedos cruéis, caíram em dor gestos que sangraram. Pior que a fealdade mascarada por sorrisos cínicos é a maldade por si só: a maldade solitária e sem pejo, gratuita, a maldade que se alegra ao inventar lucro por contrariar os outros, que rejubila em entristecer os outros, ridícula maldade fria que mesmo a tossir pela sua poeira não sufoca de vez o seu respirar de peçonha.

Uma penumbra de nevoeiro desceu e humedeceu tudo, as pedras da calçada ficaram brilhantes, a cor da terra mais escura, as mãos frias e o corpo pantanoso, desconfortável por baixo da roupa gradualmente húmida, quase molhada, o corpo desconfortavelmente colado ás roupas sufocantes e repentinamente pesadas. As pernas arrastavam os passos em bocados de som obtuso num chão ridiculamente adverso, quase manipulador, como se a gravidade aumentasse e uma outra força o soprasse de encontro ao ar, em todas as direcções; o seu andar, para onde ia, era contrariado, sequer o facto de estar em pé, erguido, a caminhar. Nada o fazia ir mas também não ficar.
Passavam viaturas, umas mais rápidas que outras, num correr de faróis, cores, passavam com velocidade em excesso, passavam com ruído e outras, devagar, precaução ou não, tudo passava em névoa colorida, um caleidoscópio misto de poluição, nevoeiro e luz opaca, um turbilhão estúpido feito de confusão.
Uma penumbra de restos condensou-se nas pequenas coisas, adensou pequenas gotas em espaços, rugas, gestos, nervuras, sulcos e dobras, nas mais pequenas coisas que a fealdade mascarada por sorrisos cínicos pudesse defecar, a penumbra húmida nidificou e criou lugar.
Nem pensava no sítio onde punha os pés ao caminhar, andava, não pensava sequer na roupa húmida, pesada, quase molhada, não sentia o corpo enregelado, quase não raciocinava, chegou e abriu a porta, tolhido, com dedos transidos e atabalhoados, na chave, na luz, no acender e apagar logo de seguida a luz, pois magoava-lhe a luz nos olhos, transidos, atabalhoados e cansados, os passos até se deitar, a mágoa de não ser a paz como desejava que fosse, a verdade que deveria suceder, mesmo que não a desejada.

Chove, agora chove e a vontade que se alegra ao inventar lucro por contrariar os outros, que rejubila em entristecer os outros, pinga, pinga em gotas agrestes e esparsas que se condensam nas pequenas coisas, rugas, gestos, em espaços, chove, pinga e entranha-se, em vários lados.
Um vento abriu o horizonte, ao longe, varreu o que restava no chão e a poeira subiu, mas com este tempo molhado, da terra subiu uma tremenda vontade que implodiu, da terra ficou um bafo, quente, que atirou as imagens para trás da pele e, na pele, correram riscos de suor, deslizaram em marcas de sal que foram cicatrizes anunciadas: a pele anoiteceu com a geada, a pele envelheceu com o regresso pois nada nunca foi uma chegada.




Era uma penumbra, mal conseguia discernir os meus pés do caminho em si, menos as sombras que me acompanhavam sem uma única que fosse a minha. Um vento abriu o horizonte ao longe, magoava-me a luz nos olhos, transidos, atabalhoados e cansados, magoava-me a tenacidade, magoava-me isso que não me impedia de continuar. A terra, pedra, areia por baixo dos meus pés, era isso que parecia troar nos meus ouvidos pelo silêncio nocturno onde tudo me pareceu soar igual: alto, demasiado alto. E não queria acordar a paz que me envolvia. Afinal não sentia as minhas passadas e não queria, na minha pele corriam riscos de suor e não queria. Não queria a pele enregelada pela fealdade mascarada, nem maldade solitária, nada.
Estava escuro e respirava o cansaço com alegria, respirava a custo mas o peito estava leve na luz que o ocupava e preenchia, alguém tomara uma bebida tão gasosa e brilhante que explodira e contaminara o mundo de música colorida e animada. Como será que te sentes agora que já dás valor ao prazer, ao facto de respirares o luar e a música colorida de uma ou outra qualquer explosão de alegria?




Estava escuro, mal conseguia discernir os meus pés do caminho em si, menos as sombras que me acompanhavam sem uma única que não fosse a minha. Terra, pedra, areia por baixo dos meus pés. No silêncio nocturno tudo me pareceu soar igual: alto, demasiado alto. E não queria acordar a paz que me envolvia.
Apareço então por entre a folhagem e aproximo-me do mar. Suavemente, a brisa quase que me humedece os lábios e suspiro. Não há ninguém ao redor, dispo-me da realidade e limpo a mente de pensamentos. Inspiro profundamente e largo-me no chão a sonhar.
Lá em cima a lua espreita-me com um sorriso maroto.
Correspondo.




Acordo numa manhã qualquer de uma cidade estúpida,
estico o braço a tactear o espaço a meu lado
…vazio.
Nem morno… frio.
Tinhas ido.
Mesmo estremunhado sorrio e inspiro um olhar para cima,
ainda saboreio na boca um rasto de lua nos meus lábios
…por todo eu o suor do amor no calor daquele abraço.
Tornei a esticar o braço e a sondar o tempo ao lado
…vazio de ninguém.
Acariciei terra, areia, o chão, segurei em tudo esperança
das mãos
nos braços,
de me sentir nos dedos mais uma e outra vez,
colorindo o vazio,
descoberto em ti, tu, horizonte de mim.
Sentir-te o encanto num conforto de luz
que me fez não mais um extraviado.
Solitário, sim…
mas já não triste.
Apenas arrependido por ter acordado.




2009/2010

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