30 de setembro de 2010

Ouvi Através da Parede



Ouvi através duma parede o que pareceu um murmúrio, um cicio, rumorejar de vagas, sopro de vento em arbustos ou ramos de árvores, assobio leve nas mais altas fragas. Ouvi através duma parede o que me surgiu num sussurro e suponho que em cada centímetro afastado mais perto ouvia nitidamente o que não distinguia, não reconhecia ouvir o que sabia. Mais perto que a presença tinha um som que me ocupava o espaço da memória, enchia o campo da ausência, mais perto do que pensava estar a ouvir e o que realmente conhecia, reconhecia, que me ocupava a curiosidade e me tomava o silencio.
Suponho que não seria ilusão de ouvir o que precisava ouvir, suponho que não seria imaginação minha, vontade incoerente nas pontas soltas desta tapeçaria.




Ouvi através da parede os ruídos costumeiros, dos mais desavindos aos mais comuns e corriqueiros, sopro de vento, brisa sacana, indistinta e urbana. Ouvi através da parede um corte na casca duma árvore, um som que era a lua que não via, ouvia, através da parede desculpas ocas, ingratas e toscas, era a lua e não a via. Mais distinto que um piar de gaivota, uma lenta e comprida vontade rouca, baixa de uma contagem louca, somar e diminuir em contas de agiota. Pode ser que tudo se mova além desta parede que me ocupava a curiosidade, pode ser, que atrás desta parede afinal seja tudo á frente. Um todo ou quase nada passado, apenas presente.


2008

24 de setembro de 2010

O nascer da saudade de ti



A manhã lançava calor aos primeiros passos da madrugada, quase falando de boca fechada, arremessando verdades naquele silencio de quem sabe tudo mas não diz nada. Na rua encharcada onde a chuva pingava gotas invisíveis, multifacetadas, no asfalto brilhante, o frio não era nada. O frio não era nada, o frio não era mais nada que uma diferença entre o corpo e o ar, entre o ser da pele e o espaço que mudava, o espaço que ficara confinado entre as nuvens, o manto baixo das nuvens, um cobertor cinzento e espesso, fosco e multiforme de nuvens. E o sabor da tua pele era uma lembrança que pingava.
Estava calor. Na rua, eram quase espelhos as pedras da calçada, quase cristais as pedras brilhantes da rua, apenas calcário, mas com as gotas da chuva que mal se viam eram uma veladura, fina, uma camada suave e transparente como de verniz onde as luzes morriam com a madrugada. Nascia o dia e as pedras da calçada não faziam ruído na sola dos passos, não recusavam o ir nem devolviam o som das passadas. O calor da rua pensava que o som provável da chuva poderia ser uma das tuas gargalhadas.





As paredes choravam, o dia condensava em gotas a diferença, a ausência, do gelo, do vento, do frio… nos muros, nos tetos, nas paredes o dia condensava em gotas a tua presença. A camada opaca e cinzenta de vidro não era uma vidraça, a camada lisa, cinzenta e opaca, não era mais que a diferença, a fronteira entre mim e a lembrança, a ténue camada do longe e da distância. O frio não era nada, o frio não era mais nada que uma divergência entre o corpo e o ar, entre o ser da pele e o espaço, a mudar.
A chuva trazia claridade, a chuva parecia derreter a luz do sol que brincava com as cores, a chuva trazia o sol em desenhos de luz, brincava aos pintores.
Estava calor e assim o dia, o dia brotava em todo o lado em gotas, lágrimas sem dor, tudo salpicava, escrevia. Em todas as paredes o frio do dia tinha-te posto em mil gotas a cintilar, o brilho dos teus olhos, a tua alegria. Tinha-me salpicado o peito com o teu suspiro em mim, o maior fragor que o silêncio podia ter… o nascer da saudade de ti.


2008

7 de setembro de 2010

Ninguém te vai amar como eu




    Ninguém te vai amar como eu, ninguém vai não respirar, não vai comer como eu não comi, dias, noites a fio, a morrer pensando que vivia, despertar entre nuvens sem acordar, dias, noites a fio, fossilizado numa pedreira colossal de melindro e confusão.
    Ninguém vai nunca dar valor ao que é ter o céu-da-boca a escamar como quem engole peçonha sem dar conta, como quem sorve, sem saber, um veneno que tira a pele da língua e a deixa em carne viva, a latejar. Como se o brilho dos teus olhos fosse a única chama antes ou depois da própria escuridão, a derradeira centelha, como se fosses o sol ou até a lua. Como se porventura fosses tu a última quimera da vida, intuito, a razão única.
    Nunca alguém te vai saber como eu, nos gestos que não são teus porque os detenho como meus, nos gestos meus que adivinham os teus. Ninguém te vai gostar como eu a engolir estupores, a excretar dejectos, de amor, a tentar comer para sobreviver neste pântano agreste, mosto, a engolir qualquer coisa que leva consigo a própria essência do existir, para dentro, para onde não é suposto ir. Nem eu vou amar nada mais que sobreviva de acre e com desgosto.
    Ninguém te irá escutar como eu, a ouvir vezes sem conta a mesma frase que tanto dizia quero-te, como não, vezes sem conta, a mesma estúpida canção, tantas e tantas vezes, e outras tantas que não liguei patavina porque a melodia não soletrava o teu nome. Ninguém vai amar-te como eu, surdo para tudo, nas auroras e nas noites acordadas, eu que fiquei surdo para o mundo pois nenhum vento segredava o teu nome, nunca. Ninguém vai amar-te como eu, sim, porque sabia bem o que tinha ouvido e não quis acreditar, nunca, porque eras tu, a tua pele sem cheiro algum, os teus lábios insonsos, o vento a estalar a pele dos meus, o vento a soprar as palavras onde dizias não me gostar, tudo em ti me cuspia e desdenhava. Mais nada.





    Ninguém te vai amar como eu, ninguém vai não dormir, não vai comer como eu não comi, dias, noites a fio, a mover-me pensando que vivia, acordar entre sonhos sem despertar, dias, noites a fio, petrificado num glaciar descomunal de melindro e confusão.
    Ninguém vai nunca saber o que é sentir o céu-da-boca pelar como quem bebe sem beber um chá a escaldar, como quem come, sem comer, um pedaço que tira a pele da língua e a deixa em carne viva e a sangrar. Como se o brilho dos teus olhos fosse a única luz antes ou depois da própria escuridão, como se a luz fosse tua, como se fosses o sol ou até a lua. Como se porventura fosses tu razão, motivo, a centelha única da vida.
    Nunca alguém te vai saber como eu, nos gestos que não são teus porque os adivinho como meus, nos gestos meus que parecem os teus. Ninguém te vai amar como eu a engolir mosto, tanto mosto acre dos dias, de lava, a tentar comer para sobreviver esse amor agreste, a engolir qualquer coisa que leva consigo a própria garganta atrás, para dentro, para onde não é suposto que vá. Nem eu vou amar nada mais que resida áspera e com mágoa.
    Ninguém te vai amar como eu, a ouvir vezes sem conta a mesma música que tanto dizia quero-te, como, vou esquecer-te, vezes sem conta, a mesma canção estúpida, tantas e tantas vezes, sem parar, e outras tantas que não liguei patavina porque a melodia não soletrava o teu nome. Ninguém vai amar-te como eu, surdo para o mundo, nas madrugadas e nas noites mal dormidas, eu que fiquei surdo para tudo pois nenhum vento segredava o teu nome, nunca. Ninguém vai amar-te como eu, nunca, para os pássaros que pensei capturar, querer os grilos do campo a encher-me as noites com o sossego do teu perfume, o cheiro da tua pele, o sabor dos teus lábios, e afinal, o vento a quebrar a pele dos meus, o vento a soprar um vazio onde nem os grilos nem os pássaros, nada, te sussurrava. Nunca.
    Nada.



2010