26 de maio de 2010

Papéis Esquecidos V (Maio - 1985)





A figura moveu-se, deu dois passos e pensou: serei eu? Voltou atrás e tornou a estacar perante o homem á sua frente, tal e qual, também estático, também a pensar, também indeciso, também ausente.
Reconsiderou: será que devo? Desvaneceu tudo com um gesto que não fez e deu três ou quatro passos, seis ou sete, ou… não interessou quantos deu ou não deu, afastou-se e o homem seguiu-a.
Quem seguiu quem? A figura, ele? A quem deu o quinto passo e não se mostrou? Sim, do espaço, um espaço em redor do espelho e do corredor e do espaço, compasso de alguém que não ele.
Reconsiderou: vou! Decidiu mas nada fez, escutava-lhe os passos, por vezes a respiração, ora mais perto ora mais longe, aumentou, diminuiu, os passos, mais rápidos, mais compassados depois, sem respirar pensou ir pé ante pé até perto da respiração dela e cobrir-lhe o sopro com o lençol ou a almofada, ou com outra qualquer coisa que lhe calasse o que achava insuportável.

E agora, meu amigo? Que vais tu pensar? Vais tu, porventura questionar-te inseguro, vais? Imaginar?
Uma falha, digo-te eu, sim, e tudo isto será já estar a pensar demasiado no que aconteceu. Uma discrepância, decerto, sei… já me aconteceu! E todas as palavras nestas frases não serão já sinónimas do aceno dessa insegurança?
Dizes não, não posso, não quero, não posso mesmo, não devo… Certo! Mas a cada ruído, a cada gesto, cada movimento, meros passos, tosse ou conversa, cada uma coisa dessas te faz atirar a cabeça e olhar nervosamente para todo e qualquer lugar.
Não te respondo. Sabes que a fragilidade é pressentida mas questionável… a sensação de ter errado é mais intima que o desejo de acontecer.

Não te posso atingir assim e não há quem apedrejar de culpas, não, é um muro que coloco em teu redor para não te agredir pois é tua, toda tua esta e outra e mais qualquer culpa que exista! Pedir nem sempre é apenas o acto de estender a mão, mas: tenta saber-me, tenta assim, como eu tento saber-te… é por mais vexante.
A figura afastou o homem com um gesto que tudo desvanecia, só fez o que lhe apeteceu, ignorando-o, somente parou quando lhe ouviu a voz, directa e claramente, chamando-a. Sentiu dentro e fora das brumas da febre toda a ridicularia, viu-lhe os lábios sedentos e crestados, gretados, quase cinzentos. Não havia pena para ela. Não havia pena para ele. Se ela escolheu uma altura em que ele estava longe e se ele sentiu por demais violento o embate de ela o deixar por isso mesmo, ao estarem longe, ingloriamente me vergo, pois já nada estava certo.

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