28 de dezembro de 2010

Até que chegue a madrugada


    Vou aconchegar melhor a gola do pijama, certificar-me que as calças não caem, acho que até vou buscar o xaile que era da minha avó porque logo à noite vou sonambular. Os clarões dos faróis chegam rápidos, iluminam-me a janela do quarto em rectângulos prateados e fogem, um pouco mais lentos do que vieram, pois, é aquela curva defronte, aquele cotovelo perigoso onde por vezes os pneus guinam, resvalam no saibro da berma e guincham ora pela velocidade ora pela perícia aselha dos condutores. Deve estar frio, acho os vidros baços, é a condensação, imagino lá fora, na rua, nuvens de vapor de água em redor das bocas que falam, pés a bater no chão para activar a circulação, sem mais gestos, todos com as mãos bem presas dentro dos bolsos ou escondidas num abraço hirto ao próprio corpo. Só que não oiço ninguém. Talvez os vidros estejam apenas sujos. Agora me lembro que já não recordo a última limpeza. Mais um filete de luz, outro clarão e um longo final sinuoso, outro, e mais um, este era grande, talvez um camião, demorou mais e fez estremecer as vidraças. Não consigo dormir! É melhor apertar bem o pijama, certificar-me de que está bem abotoado, vou também preparar o cobertor de emergência porque logo à noite vou sonambular por aí.

    Por agora aninho-me melhor entre os lençóis e enterro a cabeça na almofada. Os rectângulos iluminados da janela projectam-se na tela do tecto decalcando o candeeiro, passam pelos quadros, provocam as cortinas e fogem de seguida, qualquer rápido ponto nos confins de um canto. E são tantos, não tenho descanso! Mexem na cozinha e a porta surda não se move. Quem será? É a incómoda vizinha do lado a lavar a loiça a estas horas, o filho pedrado a chegar a casa ou o solteirão bêbado do vizinho de baixo desatinando com a fechadura? É o frigorífico que geme como um bebé meio adormecido, estremunhado.

    Arquejo, olho e recordo-te no Verão, tão branca ao sol, espraiando com as ondas, brilhando ao sabor do mar, enterrando o engano dos amores como se nada fosse e lembro, quando o petroleiro derramou e quando o oceano arrotou toneladas de lixo misturado nos cadáveres dos peixes e das algas… não sorrias então. Fiz-me acreditar que era pela calamidade do acidente, sem reparar que, afinal era pela catástrofe sim, mas a que guardavas em segredo no teu peito. Se eu te adivinhasse, veria a minha imagem esborratar-se do teu coração num desvanecer de tinta mal seca sob um aguaceiro temporã. E agora claro que arquejo quando me foges por entre os dedos como o tempo, não sei se te gosto ou se te odeio, és como areia, entre os dedos, sim, sempre a mesma areia intrometida, metida lá mesmo onde não é precisa. Areia na tua cara, que tirei com um gesto despreocupado mas carinhoso, areia debaixo dos pés que não consigo tirar nem por nada e detesto o trincar ruidoso dos meus sapatos de encontro ao chão em cada passo que dou. Areia entre as minhas costas e a roupa, entre os nervos e os ossos, areia no meu pensamento...

    Acho que ontem á noite eras tu a voar em redor dos meus sonhos, mas quando acordei só ecoavam os miados do cio dos gatos e a porcaria dos canos quando os vizinhos de cima puxam o velho autoclismo. O longo arroto malcheiroso da merda dos canos, o ronco fedorento dos sacanas dos canos! Mais uns faróis, um guinar de pneus... porra, este bateu! O baque da chapa contra chapa e vidros partidos na escuridão, palavrão, silêncio, ofensas e discussão, pouco depois um estalo e os pneus tornaram a resvalar, até passou depressa. Sim, deve estar frio, tenho de ter cuidado para não me constipar, talvez seja melhor vestir um pijama mais quente com umas calças grossas, não posso perder o norte aos chinelos porque logo á noite... que raio, quero dormir mas ainda nem sequer adormeci e já sinto a manhã a chegar!?




    Quero agasalhar-me mais mas nem com os lençóis nem o cobertor consigo. A manhã já solta nevoeiro, geme lá longe como um barco perdido ou um comboio que chega. Procuro fechar a janela cerrada na esperança de impedir o frio, se não me mexer muito os ossos não quebram, tento ligar o radiador fundido, “de onde vem este ar gélido?”, pergunto se é um bafo fantasma, “por que raio de greta entra esta faca que me apunhala pelas costas?”. Desejo por tudo que este calafrio sejas tu de novo e que me baste esfregar os braços com as mãos para o conseguir aniquilar, simplesmente. Apesar de não me apanhares a dormir, espero sinceramente que sejas tu a tentares, desejo muito sinceramente que avances e te cortes no arame ferrugento da minha solidão e te infectes!

    “Deixa-me, estás sempre presente, consorte, mas tens ruído, trazes desassossego e já tenho de sobra. Dinheiro, mitologia, sortes, quantas lendas… Talvez não fosse mau mas, larga-me de uma vez por todas, não quero saber nada, prefiro ignorância, deixa-me porque quero silêncio, vácuo, mesmo vazio e não te escondo o enfado. Estou nervoso, inquieto, inseguro, tenho uma necessidade recalcada de afirmação que preciso satisfazer e só te oiço dizer, “nada disso é importante”, e o mundo a desdenhar. Só prejudico e prejudico-me: mas será que tenho de a deixar morrer? Menos um pouco do meu ser, ou de nada, ou de coisa nenhuma. Estou perdido, não tenho casa. Sofro demasiadas pressões e encaixo-as: torno-me agressivo e toda a calma necessária ao pensamento esvai-se, como fumo ao vento, deixando-me equilibrado no arame ao longe, de olhos vendados por mim próprio com duas soluções, qual delas a pior, de ficar calado e vir a perder por inacção ou falar e perder por precipitação.”

    Doce cama, doce cama, terna sedução irresistível; sonâmbulo, o vento canta, a noite pintou de estrelas o tecto do quarto e tenho sede. Maldito silêncio! Já me oiço demais, tenho receio de perder um qualquer momento que me possa escapar da tua volátil presença; no entanto, com o nariz entupido, também não te consigo respirar a alma! Embrulho-me todo na roupa, ainda estou deitado afinal, está frio; serão os teus dedos a sangrar? Todo eu me encolho, sufoco, tentando fugir da escuridão… Finalmente, as luzes começam lentamente a se apagar.



15 de dezembro de 2010

Nunca Palavras




    Desde que me olhei e me voltei a ver, de novo olhei, de novo me vi, voltei. De novo. Com ou sem peso, de novo encontrei o que afinal não tinha perdido, com ou sem peso olhei e vi, que sabia que estava vivo, que sabia que estava mas sempre com vontade de já ter ido. Então fiquei.
Desde que me olhei, reparei que desde que foste, tantas outras pessoas também já tinham ido da minha vida e eu continuava vivo. Desde que foste, pensei, o que te demorou tanto a ir, pois continuo vivo? Que foi que demorou tanto a magoar e a moer o que já podia ter sido? Então continuei.

    Cicatrizes não são tatuagens, cicatrizes são muito que já foi e agora apenas marcas, pegadas do tempo, inscrições talvez, mas apenas garatujas e nunca palavras.
As palavras são de quem escreve ou fala, as palavras são de quem e não nunca de como fazer sem dizer nada. Os gestos deixam marcas mas são atitudes, são vento, são vultos, sombras, areia, sedas ou escarpas. As palavras são desenhos, frágeis, delicados e cuidadosos, as palavras são linhas de letras com som e quem apenas pensa que as sabe ou sente mas não ouve, tanto sufoca como mata.
Quem não se ouve não sente as cicatrizes que causa. Tudo o que escreva ou diga pode parecer garatujas, mas certamente nunca palavras.

13 de novembro de 2010

Da escrita...



Escrever não é apenas gravar palavras. Escrever, até por vezes é menos em palavras o que a escrita permite que seja das palavras que urgem gritantes no pensar, sons tão rápidos que até chegarem braço afora aos dedos se perdem, por vezes, transmutam-se, modificam-se, desvanecem, torturam-se, mudam, transformam-se, modificam-se, até desaparecem das frases erigidas e que se pensam terminadas.
É uma vasta liberdade que vicia e a que se regressa com vontade de mais. Quem escreve por amar escrever não se sacia.

Um poema não são apenas empilhar frases de curtas palavras com ou sem métrica.
Poema é paixão gravada com gestos ou letras!
Poema é suspiro, arfar de respiração, rufar de tambores ou silencio e calma, tanto de placidez como raiva e sangue a jorrar por gritos ou carícias de luar na pele que por exemplo ferve desejo luxuriante e toque real de carne.

Escrever não é apenas desenhar letras ao correr da vontade. Escrever até é por vezes menos de querer do que no papel ou noutro qualquer lado seja o que for que fique gravado. Escrever por fácil que seja de tormenta ou dilúvio que jorre de palavras, é tanto de harmonioso e simples como de trabalhoso e suado. Aridez que seca nos lábios o devir da paixão. Nascente cristalina e fresca mas prenhe de esforço e transpiração.
Entre as facas que se espetam na garganta e as flores que jorram das mãos, escrever é uma aventura de sensações que delicia e extasia.
Um poema não é apenas um empilhar de palavras… poemas são escrita de alma.



Escrever pode ser fácil mas escrever é também uma tortura.
Escrever para nos libertar da angústia, escrever apaixonados, rabiscar dejectos, escrever quando estamos tão felizes que transbordamos, em suma, escrever porque existimos, sentimos e pensamos.
Escrevemos quando estamos possuídos pelos sentimentos, sejam quais forem, dentro ou fora do eu.
Quem escreve sabe-o, goste ou não, pois há quem escreva e não goste.
Então quem não gosta do que escreve que deite logo fora, pois é diferente de não gostar de ler o que escreveu.

O bom não tem que ser obrigatoriamente bonito!




2007

10 de novembro de 2010

Nada é nada, antes do momento de ser alguma coisa…


    Tomás recordou do tempo, no tempo a borrasca de uma vida grande, intensa, contada em muitos dias de matemática, tão verde como seca, doce e amarga. Do tempo, as lições e as frases que definiam momentos, lições que não acreditava serem realidade e apenas tiradas de vida, usual, ditos e factos corriqueiros, dum dia-a-dia banal, apenas coisas boas para serem escritas, não boas coisas para serem postas em prática, na prática do dia, todos os dias. Antes, quando: deixei de sair para ir ao convite do meu amigo, não foste comigo porque não quiseste, não querias nada e eu não fui, fiquei em casa, fiquei contigo em casa e o tempo gastou-se sem que me dirigisses palavra a não ser para perguntares se estava chateado, apoquentado por não ter saído, se estava aborrecido, e se estava, antes devesse ter ido.
    Emília retinha um sorriso irónico mas não lhe dava a saber o porquê daquele querer, daquele inusitado impulso que a tomava, sem saber, aparentemente sem saber, oculto o porquê, oculto, talvez, mas de gesto brusco, o impulso, instintivo, sem querer.
    Ele fitou-a, calado no espanto, fitou-a naquele dia, daquela vez, calado, como em tantos outros dias o fez, calado, tantas vezes. Lembrou-se que tinha argumentado, lembrou-se de o fazer, como de outras vezes não fez. Lembrou-se que depois pensava nas razões e que argumentava, fundamentos, depois, depois deixou de o fazer, pois tinha sempre razão e ela não; depois ela passou a ser sem razão, só por ser, a falar sem assunto, a falar de outros assuntos, falando de outras razões. A vida atabalhoou-se. A vida, mesmo rotina, ficou atarantada, a vida mesmo certa e rotineira, tornou-se atabalhoada.



    Tomás ouviu, como se ouvisse uma balada triste, o vento que parecia de novo bater nas vidraças como a chuva, antes, nos Invernos da desgraça, como antes, nos Outonos da solidão gigante que tolhe e esmaga. Antes, quando: gritei-te o nome de encontro ao céu negro e apenas recebi de volta o esgar trocista e irónico da lua, nada de melodias suaves no meu peito abrasado, nada de sons calmantes ou esperanças de gestos adequados, só halos, vagos, respostas nulas e apenas mais e mais esboços de labirintos gastos. Por mais que tente ou não, por menos que deixe, ou não, deixar tornou-se um mito de Sísifo, uma realidade crua de falta de bom senso. Deixar foi um erro, porque amar-te foi um querer, um desejo, amar-te foi para mim respeitar toda tu até ao mais ínfimo ensejo, e eu não soube acreditar que por mais que regasse a flor, tu foste arbusto, sedento, tu foste voraz em consumir o espaço que nunca apertei, não tolhi nem condicionei, sempre quis fértil, pois sempre o quis largo e vasto. Sempre quis, sempre quis, desde os momentos de aflição e aperto em que sempre nos abraçámos, abraçámos a vida para a frente, sempre, até nos teus momentos exclusos em que te via a chorar eu te abraçava, perguntar não perguntava pois não me respondias, nada, e ficava noite fora, acordado, a velar o teu sono, acordado no teu dormir descansado, a descansar a noite em mim porque dormias apaziguada.
    Tomás sentia o fundo de si revolver-se, não com mágoa, mas revolvia-se dentro dele a lembrança de muitas e muitas noites acordadas, muitas das suas noites que não tinham olhos, cegas, surdas e mudas, perdidas e solitárias, doridas; as noites em que lhe teria sido bom apenas um beijo terno, um beijo singelo, um beijo apenas beijo, um beijo, apenas, um beijo para o acompanhar.
    Ela recebia-o, não como antes num abraço e até um beijo, mas sim agora, todos os dias, sem sorrisos, sempre com perguntas: onde foste, porque demoraste tanto tempo, onde estiveste, porque vieste tão tarde. E ele, que tarde não vinha, sabia, não sabia do tempo pois não estava em falta, nada faltava, ele, sentiu o tempo pesar, sabia e não sabia mas começou a sentir, realmente o tempo, o tempo a passar.



    Tomás lembrou-se das manhãs em que acreditar até ameaçava lhe faltar no vocabulário, uma lacuna, acreditar era quase um espaço em branco, acreditar era uma planta seca, que, esmagada, deixava aroma, nos dedos, agradável, permanecia-lhe na ponta dos dedos mas desaparecia depois das mãos lavadas. Manhãs em que lhe custava o caminhar, pesavam os passos, pesavam os pensamentos, pesava o acordar dos dias, custava-lhe o sol, as nuvens, o céu, pesava o ar. Seguia um caminho estafado e vazio, carregado de entulho, pejado de quotidiano, temperado aqui e ali com apontamentos perfumados, ténues laivos, pontos brilhantes que escureciam na sombra das horas, depois no dia, desapareciam na esquina dos gestos, aromas ténues, ao correr do dia, diluídos em menos de nada após lavar as mãos. Cada tarde de cada dia apenas era uma soma até a noite chegar, cada manhã que lhe passava, somava a conta vexada de mais uma tarde até soar a hora em que regressava, subtraído, para encontrar não um par de mãos abertas mas uns braços cruzados. Por cada manhã de cada tarde com cada noite, cada alvorecer entardecia uma escuridão; cada manhã de cada tarde com cada noite, produziam-lhe os dias, aqueles dias asmáticos, os seus dias, consumidos em senãos. Acreditar, tornou-se uma lacuna no seu vocabulário, acreditar, foi mais um espaço em branco nos dias, acreditar, mais uma frincha por onde escapava a vida, mais uma falta. Passou a tomar o caminho mais longo para casa.
    Não era o calor do amor que o esperava, o calor do aconchego, não era o aroma terno e morno do carinho que o aguardava. Emília destilava amargura, ela ruminava rancor e na alma ia avivando uma mancha escura onde antes lhe habitou a ternura.



(excerto de "O Dia que parecia não era já dia") - 2010

9 de novembro de 2010

Excertos



Cheirava mal, as valetas estavam atulhadas de porcaria, as sarjetas entupidas tresandavam a podre e a água que escorria ou pingava dos algerozes desenhava mucos verdes nas paredes. Podia-se escorregar tanto no musgo das vielas como na lama das travessas. Mas aquele cheiro nunca mais ele sentiu ao passar naquelas mesmas ruelas, siderado com as recordações, cambaleando abstracções, desejando recortar a memória em pequenos cromos de colar para sempre na caderneta da arrecadação, “só queria conseguir lá pôr tudo, em prateleiras ou não, e fechar a porta sem mais senãos!”.


Deixou-se tombar no chão e para lá adormeceu de janela aberta aos ventos nocturnos, “janela maldita que fustigou a noite toda, constantemente, batendo o compasso do meu sono revolto de tolo acorrentado a um sonho místico”, ao acordar foi como se não tivesse dormido e se dormiu não notou, “estou enregelado, bolas, não morri nem nada, ainda aqui estou”, queria uma fuga fácil, um milagre, “que bom se fosse pesadelo que terminasse ao acordar...”, pois não adiantou nunca forçar-se para entender as atitudes dos outros quando nem conseguia entender as suas, “e assim fui a vogar no negrume brumoso das enxaquecas”, nem agora interessa já tentar, em nada adianta perceber o porquê das acções dos outros, “agora, aguardo a altura certa, o abrir do casulo com a ajuda das minhas patas de borboleta”.


Qual borboleta qual quê, o lodo começava a adensar-se, “as algas já me sobem pelos joelhos e nem nadar sei neste charco de água barrenta, água de sarjeta da minha vida pantanosa de órfão do mundo”, pobre coitado, “pobre uma porra, não quero nem piedade nem esmola, nada disso, deixem isso para os crentes”, especialmente aos falsos, aos pavões hipócritas, idiotas que vão para a igreja espojarem-se desfraldando as caudas perfumadas e que nunca pela bíblia passaram os olhos sequer, “não quero misericórdias ocas pregadas por padres fingidores, falsos poetas em sermões confrangedores, não, não quero mãos estendidas em ajuda ou erguidas em prece, as mesmas que batem, desferem chapadas esperando verem-me oferecer a outra face!”


Ao abocanhar a vida em quentes noites de Verão e outras tantas tardes iguais cheias de utopia, nunca pensou que algum dia estaria a pensar assim, em mais um malogrado Domingo, “hoje estás...”, nem um sorriso, “sei lá, é estranho”, dá em que pensar, “bastante, parece que somos estranhos um para o outro...”, belos tempos apesar de tudo, “bolas, mas não me amas?”, e os dois choravam, contemplando-se mutuamente, sussurrando “amor”, baixinho, com as bocas fechadas num beijo, olhares cegos e carícias mudas em noites ternas, “amo-te”, ao ouvido, “sim, tanto!”, e, “não te esquecerei enquanto viver”, e, “pois se o viver tem razão, és tu, amor”, pois morre ou mata, “diga eu não, não quero ou não consigo, diga eu, a maior diferença entre tu e eu, amor, digo eu digo eu, é ser traído!”.


-Um Parvo do Caraças- 1984/89

8 de novembro de 2010

Tempus fugit!



Sentia como tinha sido indiferente, naquele ou noutro qualquer dia, naquela manhã ou tarde ou noite.
A presença era por demais insistente e pesava-lhe com os dias, um após outro, cada vez mais ele sentira, um após outro dia que passava e julgava ser normal na vida eles serem assim, pesados, era a vida, era assim que de costume ouvia dizerem que era. Mas seria?
Não quisera pensar mais nada. Do silêncio nada obtivera, do silêncio tinha perguntas e depois, no silêncio, aquele silêncio pesado que causava desconforto e não era dele, nesse, ele retesou os músculos, todos e mais alguns músculos de todo o seu corpo e observou em seu redor. Suado, observou, cansado, conseguiu observar em volta as alegrias e as dores, as peripécias e os percalços dos demais e abdicou. Abdicou da paciência pois tanto o vento como a chuva lhe traziam o mesmo que a um qualquer, apenas ele sentia de modo diferente o desconforto de tantas borrascas, tempestades sem bonança, vorazes torniquetes de vontade e sôfregos ciclones de ser. Não ser. Ser? Ou perecer? Não! Ser, sim, ser!
Estranhamente, nem a linha do horizonte ou sequer as sombras do passado lhe pesaram. Fez por não esperar nada, estava cansado, em dívida para consigo e com o seu passado, pois o que chamava de paciência afigurava-se-lhe agora um mosto de passividade. Agora, toda a sua calma e racionalidade estava tal qual um pântano que se lhe agigantara ao redor da idade.


O moer das luzes naquela cave onde a humidade do tempo e o minar dos alicerces pelos bichos que matam o amor, ofereceram-lhe, de bandeja, ofereceram-lhe numa estúpida e ridícula bandeja, qual salva de prata corroída, uma triste iguaria sufocante que cheirava a desdenho e sabia a desprezo. Um paladar acre, doloroso, incoerente, o sol não se mexia e a lua petrificara mas nunca era bem noite ou dia, parecia que o vento ainda soprava mas os pássaros voavam de marcha-atrás.
A razão esmoreceu, colidiu com aquele jardim suspenso feito de pedra e cal azeda onde as palavras tinham emudecido fazia muito tempo e apenas restavam esquiços, esparsos, parcos rastos, riscos de alegrias breves dum antigamente tão estranho como distante.




Pois assim naquela manhã encontrou a marca da sua triste existência e vomitou, vomitou um liquido claro, azul translúcido, que não era água mas era como que um cristal brilhante e visceral como a essência de um fauno ou um rasto etéreo dum unicórnio sideral e puro.
Apaixonou-se por existir e respirou. Pensou que o coração já não lhe existia para ser amachucado e sofreu quando o viu de novo pisado. Que vórtice... tanto vendaval… Mas na marca das suas mãos reparou que o rasto era belo, fazia bem, deixava para trás amor e saudade e o sangue do seu coração espezinhado não era nada comparado com o que retinha em cada vez que suspirava.
Agora devolvia o sorriso a cada passada. Todos os medos e incertezas produto do fundo onde tocara mais não eram que subidas, com ou sem escadas, estupidamente certas como vagas. Estava acordado mas o sonho não terminava.

2009

7 de novembro de 2010

Algo sempre me acompanha



Do meu pensar, tanto o silêncio como o som me alimenta.
Dentro de mim, algo me acompanha… dentro de mim o rumorejar, o sopro, as vagas, a cadência descompassada das ideias teimosamente assimétricas, uma criatividade voraz, a recusa crónica dum pensamento comum, normalizado e banal. Que me sou de cor e melodias, sensações, cheiros, paladares e sentimentos. Que me sou de sons e movimento, e por vezes estou mudo e quedo, tantas vezes que estou tão vivo e o silêncio que detenho ou a face estranha que aparento não é mais que o aspecto do exterior que não sei, apenas a visão que os outros têm.
No meu pensar tanto posso estar a viajar mais que a terra fora do seu lugar como apenas a escutar um pouco de nada, o sopro da paz, tranquilo e sossegado, a pausa do rumorejar… dentro de mim tanto o silêncio como o som me alimenta, dentro de mim algo sempre me acompanha.

Dentro de mim só a terra dá o que a terra poderá levar pois ninguém, nem nada, é de alguém. Dentro de mim nunca degredo, exílio, banimento, dentro de mim nunca o esquecimento, apenas ausências. A falta de quem foi e não mais voltou, o desapontamento de quem falhou. Dentro de mim só o vento. Dentro de mim somente ele sopra o que não tenho sem nada me dar se por mim, sozinho, não obtenho.
Que me sou de cor e melodias, sensações, cheiros, paladares e sentimentos. Pois que sou de sons e movimento, do meu pensar, tanto o silêncio como o som me alimenta. O ar. Dentro de mim apenas o que nada me dá algo me poderá tirar. Dentro de mim só o mar.


2010

6 de novembro de 2010

Lá também




Estrelas mergulham por detrás do céu, este céu obtuso e crispado, entrecortado por brechas de claridade sopradas pelo vento que arrasta o chumbo das nuvens. A estrada fica perigosamente molhada apesar de reflectir toda e qualquer luz que por ela passe. A estrada fica demasiado nítida em frente, por baixo dos pés.
Mergulham os pensamentos na figura que se desvanece à medida que se afasta para a linha do horizonte. Apenas sim, apenas porque sim, se fosse a ti, eu não imaginaria nada a não ser apenas aquilo que o coração vê, aquilo que nos olhos se sente.
Mais ninguém faz como tal, que deveria ter sido feito, resmungam porquês, refilam arrependimentos e sopram baforadas de sufoco, desabafo, ventos cardíacos, sublimados de antemão. Olhos que não vêm, coração que não sente. Dizem. Constantemente.
Devem passar estrelas do outro lado desta cortina densa e pesada de nuvens como chumbo, entre esta camada e o céu infinito que desdenha pelo sol cadente, mortiço, agora que se põe para lá dos cumes. A estrada molhada fica perigosamente perto dos olhos porque reflecte mais do que realmente se vê. A estrada começa a ficar drasticamente mais estreita, mais definida mas mais fina.
Choveu tanto que o som da rua se confunde com as lágrimas dos beirais e as passadas agrestes e rápidas dos obstinados. Ao redor há um vórtice de sensações que cheiram a terra tapada com fuligem, a fuligem dos dias, aquele pó escuro, fino e pesado, que entope todo e qualquer buraco, orifício, mesmo que abstracto, onde estás, onde estamos, onde residem os marasmos, onde suspiram as revoltas sedentárias carpindo saudade pelas estepes.
Até o cheiro é pesado, até os gestos, apesar de cansados, redobram o seu peso em quilos de tristeza ao ir e dor no estar. Este cheiro não ficará leve mesmo quando o vento soprar, este sabor desnudo não será nunca adocicado desde que as palavras sempre sirvam para magoar. A humidade dos dias entranha-se nos ossos da vida e entope qualquer avenida.
Estrelas mergulham por detrás do céu e as baforadas de sufoco, os desabafos, ventos cardíacos, são meros espaços dentro dos momentos parcos. Os momentos escassos onde as rotinas proliferam escavando as nossas próprias sepulturas. A estrada fica perigosamente estreita e molhada, a via é então quase opaca, deturpada pela fuligem dos anos, empedernida pela humidade lenta e pesarosa dos minutos, das horas, das revoltas estúpidas e sedentárias do dia-a-dia. Reparem nas manchas de humidade sobre a cal dos dias, reparem na lama fina mas barrenta que salpica os pés na caminhada dos sentidos. Meses ásperos que se entornam, espessos, pelos anos que derrubam os escassos movimentos sem cruz, amordaçam os parcos instantes de que são feitos os sonhos e as esperanças de luz.
Por esse mundo fora devem existir tantos seres que não são parecidos mas que porventura poderão sentir de modo semelhante. Para lá das árvores a lua também desponta ou se esconde. Lá, algures, mesmo do outro lado do mundo, também as estrelas mergulham atrás da camada de nuvens, pesada como chumbo, que tapa o céu em chuva e torna o caminho opaco de lama. Lá também o sol desponta depois de mais uma noite, durante mais uma qualquer madrugada.

2009

27 de outubro de 2010

Tempus fugit?



Sentira-se diferente naquela dia, naquela manhã todavia banal, pertença como de um qualquer outro dia. O sol mortiço coado pelas ramagens verdes das árvores, brincava-lhe intermitentemente nas pálpebras como que a troçar, a escarnecer ou á laia de aviso. Só que ele não lhe prestara a menor importância. Tinha embarcado rumo a um sonho, era o que sentia e não quisera pensar mais nada.
Estranhamente, nem a linha do horizonte ou sequer as sombras do passado lhe pesaram. Poderia muito bem sentir-se inseguro, tanto assim como abandonado pela inércia, impelido a deixar-se rolar por um qualquer plano inclinado alheio á sua vontade.
Mas não era nada disso que lhe habitava o ser. Fez por não esperar nada. Sentira-se espectador, no entanto participativo, pois se apresentara não de coração nas mãos mas com ele bem á vista, algures fora do peito.




O corroer das paredes pelo bolor ácido do tempo e o minar dos alicerces pelos bichos que matam o amor, ofereceram-lhe de bandeja uma iguaria de tristeza e sufoco que o envenenara quase até á alma. A derrocada inicial foi dolorosa, mas curta. No entanto, por entre os escombros, pressentira a lentidão adivinhada até ao final que não conseguia nem podia determinar.
A razão esmoreceu perante a raiva e o prenúncio do aparecimento natural dum certo ódio latente, no entanto, reacção consequente e puramente reflexa.
Ciente de tudo isto, nada o tolhera e nem por isso mesmo o impelira. Mas fora.




Pois assim se sentira diferente, então, naquela manhã em que achou ter zarpado não em perseguição dum sonho mas sim ao seu encontro. Tivera frio, sentiu calor, misturou os tempos verbais com a realidade que se lhe aparentou verdadeira.
E os sonhos terminam, uns quando acordamos do sono, outros quando despertamos da embriaguez dos sentidos. De modo algum estava preparado para sentir de novo não o que realmente lhe tomara o coração, mas também a surpresa de realmente sentir tudo após tamanho vendaval que lhe rasgara as velas desfraldadas daquela nau.


2009

25 de outubro de 2010

De noite, a lua...



Acordar numa manhã qualquer de uma cidade estúpida,
esticar o braço e tactear o espaço ao lado
…vazio.
Nem morno… frio.
Tinhas ido.
Mesmo estremunhado ainda te sentia na pele,
ainda saboreava na boca o rasto dos teus beijos
…pairava por todo eu o odor do nosso amor finalmente conseguido.
Tornei a esticar o braço e a tactear o espaço a meu lado
…vazio de ti.
Arrepanhei os lençóis numa ridícula esperança de tornar a segurar-te
entre os braços
num abraço,
sentir-te nos dedos a derreter de prazer,
esquecendo o vazio,
perdida em mim como eu dentro de ti.
Sentir-te os olhos e o sorriso
que me fez não mais estar desgarrado.
Abandonado, sim…
mas já não triste.
Apenas arrependido por ter acordado.




A luz estava onde o sol estava, a luz era mesmo a do sol, a luz era o calor que o fizera acordar, era mesmo o sol, a luz do sol que o incomodara mas não estava chateado, apenas arrependido por ter acordado. Lembrou:

Tornei a esticar o braço e a tactear o espaço a meu lado, vazio de ti. Arrepanhei os lençóis numa ridícula esperança de tornar a segurar-te entre os braços, num abraço, sentir-te nos dedos a derreter de prazer, esquecendo o vazio…

Nada tinha que supor enquanto o dia não clareasse, nada tinha que saber antes que fosse agora, já, agora altura para qualquer coisa. E era de noite, afinal, era ainda de noite, agora era altura de estar, mais nada, afinal agora ainda era apenas quase madrugada, mas nada clareava, nada sucedia, nada acontecia, tudo estava prestes mas nada decorria enquanto ele sonhava.
A luz não era do dia, a luz não era nada, a luz que o incomodava não era mais que um ruído, pareciam gotas, pingos de encontro ás vidraças, cristais de luz do céu, era esse ruído que luzia e o tinha acordado. Pensava. A luz estava onde o sol estava e ali era a lua que o espreitava, era ainda de noite, a luz da lua, eram ainda apenas os pequenos laivos moles da madrugada.

E em vez de te sentir nos dedos, perdida em mim como eu dentro de ti, foi mesmo arrepanhar os lençóis, qualquer espaço defronte, ao lado, foi mesmo não te ver mais.

Afinal a luz estava onde o sol deveria estar, afinal a luz fora mesmo o que o acordara: choveu tanto que mesmo que o dia clareasse e o calor fosse realmente aquilo que o fizesse despertar, nada o incomodava apesar do sonho, não estava chateado, apenas arrependido por ter acordado, realmente, apenas arrependido por ter aberto os olhos e não ser o poema que tinha sonhado, não ser o sonho a verdade que agora tinha depois de ter despertado.




Choveu tanto que me deixo a ver as gotas tuas, as gotas nulas de uma e mais outra frase crua, mais e menos coisas que pingam como as gotas, da chuva, não que nada mais de água, mais ou menos que jogos líquidos, truques parcos, menos que um bater de coração; não tens nem queres, discernimento, procuras e dão, sim que te dão ajuda e consolação.
Choveu tanto que me deixo a ver as gotas nuas, as gotas na vidraça fria, os desenhos que o vento faz nelas e nas coisas que pingam como as gotas, da chuva, não mais que água; mais ou menos as tuas idas e vindas, mais ou menos os teus gestos e as palavras, os movimentos do cinzel que lapidou os dias, teus e meus, os dias, como a terra aberta em rasgos de enxada.
Choveu tanto que me deito agora a ver as tuas gotas pingando na minha vida, as gotas brutas, outrora lindas, as gotas tuas, olhares e sorrisos, mais e menos coisas que agora pingam do lado de fora como as gotas da chuva, não mais que água, não mais que líquido a desenhar motivos, quais garatujas empoeiradas.
Choveu sim, choveu e agora deitado vejo as tuas gotas, as gotas que pingaram a minha vida, as gotas bonitas, as gotas quentes e sentidas, agora frias, agora rudes e cruas, as gotas tuas, agora nada mais que desenhos líquidos, marcas, fustigos, do vento, o vento a escrever com a chuva, do lado de fora, no vidro sujo da janela empoeirada.




No vidro sujo da janela empoeirada, perante a lua, nada vale de encontro á luz que empalidece a vontade. Nada está mais opaco que o vidro do meu ser. Nada amadurece sem luz, jamais.
...e forma-se na sombra da luz o contorno do abandono. O sabor amargo que dói no peito e desce salgado, lentamente, pela face.




“Apesar de me amares sinto que me sobras”, disse ela entre dentes, “bolas, queres que faça o quê”, franziu ele o cenho e depois cuspiu, dizendo, “a minha vida não é contigo, a minha vida ainda está por definir”

Catedrais de nuvens abatem-se sobre a minha cabeça, daqui a pouco deve ficar frio, mas entretanto não o sinto, apenas a luz diminui, talvez espere até que o sol desapareça.

As manchas no lençol são do sol, pela vidraça, filtrados por entre as persianas plácidas. Falar não pode, sentir não consegue; enquanto foi tudo o que eras, morri até de vontade, agora sou qualquer coisa e tudo acaba, mais além, perante a lua. Errado.




Branco entre uma noite e dias, estes dias de susto por hiatos e estúpidos pedaços de nada, graves e agudos em sons ocultos, abafados, sons ocultados, oprimidos e amordaçados. Horríveis sucos acres de má vontade, venenos inodoros e letais. Branco de caos aparente como nada, como tudo, sons mudos, propositadamente dirigidos ao tumulto, sons sem palavras, sequer ruídos. Vácuo aparente, torpe e sonolento perfume desagradável do sangue apodrecido e díspar. Branco entre o toque e o impacto, branco de cores secretas e por demais explosivas.

Postas de lodo entre as gengivas e os dentes num grito sem retorno, num grito fedorento pela garganta opaca, inchada e áspera, intumescida, turva e apodrecida no lodo das palavras não ditas.
Bostas nauseabundas de sorrisos imitados e falsas atitudes de mesquinhez e bondade abrupta, falsa, falsa e ridícula, abrupta e falsa e por demais ridícula. Lodo informe nas cavidades mais recônditas da boca que não consegue mexer a língua para articular palavra.
Postas de lodo entre as gengivas e os dentes numa ridícula e desesperada criação de borrasca. Palavras torpes, palavras torpes e escusadas.

Camadas de barro inerte onde apodrecem carnes vivas de sangue entre lâminas cravadas nas unhas dos dedos, de todos os dedos, das mãos e dos pés, entre a carne e o osso das unhas, todas as unhas do corpo.
Camadas de terra informe pespontadas de branco, o falso branco de marfim, baço, o branco acinzentado das carcaças ressequidas, carcomidas e aprisionadas. Nuas condenadas, despojadas, descarnadas pelos abutres, comidas pelo remorso e os seus vermes, pelos abutres e os vermes e as lombrigas do ódio, o ódio do despeito, a raiva predadora… parasita informe da felicidade.

Branco entre uma noite e outros tantos dias, de tantas noites sem dormir, sem o serem, noites, que depois serviam de catalisador para os dias, para os pedaços dos dias em que sucos acres de má vontade, venenos inodoros e letais subscreviam mais de metade da vida. Da vida como devia, como devia ser um amplexo e um beijo de madrugada, como deveria ser um beijo, um mero beijo de olá ou despedida. Um beijo de olhar e ver a vida.

...e forma-se na sombra da luz o contorno do abandono. O sabor amargo que dói no peito e desce salgado, lentamente, pela face.




Tenho as mãos, as tuas mãos, tenho as mãos, as tuas e as minhas mãos aqui no corpo, o teu, sedoso, o meu, sequioso, corpo, tenho e tu, no meu vais tendo. As mãos? Os dedos?
Sei lá o que vamos tendo se o que sentimos é para lá do que somos e o sentir, mesmo, é por demais para cá de nós, e longe, fora, para lá do compreensível do que somos.
Na esperança de tudo e nada que nenhum de nós tem e acredita que existe, somos, as palavras, somos os sorrisos e o que eu e tu calamos sem dizer pois já tudo está dito, somos, pois tudo já o está antes de ser pensado, dito, falado, tudo abafa as palavras e os gestos são de volúpia e compota, de morango ou doutros frutos vermelhos, de chocolate quente pingado sobre o gelado das nossas mentes. Vamos tendo, nos corpos, as mãos e os segredos.
Se penso em ti a madrugada tem mais luz que a melhor das cores que um arco-íris poderá ter, mais cores de a luz que um caleidoscópio poderá conter. Se em ti a madrugada me está apensa devido ao sol-pôr do dia anterior, que mais cores poderei sorrir ao ver-te? Obsoletas são as tardes, esses pedaços entre o começo e o fim dos dias que passam por nós e onde me fixo de ti os sabores, o cheiro das curvas do teu corpo e as cores, as cores do teu gesto nos movimentos do brilho dos teus olhos, meu sorriso, teu amor.
Que temos ou vamos tendo? Aqui ou não, aqui, ontem, agora ou depois, que temos tido? No teu corpo de luz e com aquele cheiro que até com ele tu te surpreendes quando estás comigo, que temos tido? Aqui na suavidade dos cheiros que se misturam até na língua, até sobre e por baixo da língua, que temos? Temos tido a esperança e não nunca a certeza de ter, a presença e não nunca a posteridade.
Tenho nas mãos, as tuas mãos, as minhas mãos nas tuas e nas nossas, as mãos que temos partilhado, sentido e trocado, trocado os sentidos, dado e sentido a pele das mãos que temos imbuído de significado e jogado sem estratégia, num jogo cúmplice mas inocente, não denso, em nada opaco, um jogo sem limites que nenhum se lembra ter perdido pois foi sempre tudo ganho.
As tuas minhas mãos são, não sendo, palavras, e mais te digo, menos me falas, quando de palavras o caminho de longo não tinha nada, escrito na fachada, pingando gotas das letras, ainda frescas, a pingar a escrita oferecida e gravada a quente no momento de improviso, na emoção das frases. Vamos tendo nos corpos, as mãos, os segredos, vamos tendo, sequiosos, nas tuas e minhas mãos, tudo e mais nada que esboços.




No final do diário de bordo, o comandante escreveu algo como isto:

“O navio fantasma da minha vida assombra-me os dias. Olho em redor em busca do farol sem querer fitar o sol pois me doem os olhos de tanto perscrutar o horizonte pelo meu óculo, sinto-o na pele e o seu calor é apenas isso, nada mais do que acredito....
Isto é meu, digo... e reflicto: que posso eu dizer do que é meu?
Todos andam em busca de algo, qualquer coisa que os mude ou complete, guie ou realmente ilumine, realize e preencha. E que tenho eu, para além de mim? Será que se deixar de acreditar, tudo se vai e nada encontro mais? Terei tudo menos o que realmente me faz falta e preciso? O que é então real? Decerto o que sinto, pois sei que existo.
O navio fantasma da minha vida atenta-me as horas. Respondo-lhe que é bem capaz de tudo ser uma questão de fé, a vontade como agarro e a gana com que me seguro. Mas o que será que acontece se de repente me sentir farto e cansado? Se por momentos me sentir sem forças, derreado, será que alguém fica por aqui, perto de mim? Virá ao meu encontro? Talvez me torne seco e vazio como um velho odre, tactearei então o espaço a meu lado e nada encontrarei com os dedos, sequer o breve inspirar de um cheiro... ou na pele, um calor ligeiro.
O navio fantasma da minha vida assombra-me os dias e eu afasto-o com todas as forças que tenho, até as que pensava já não ter ou conseguir achar de novo... Insulto-o, até gracejo, mas intimamente fico amedrontado e peço ao universo que não me apague a centelha... sim que me sopre o vento atiçando-me o fogo para sempre reacender uma fogueira.”




Meu amor, meu amor, que de mim encontro o que sinto neste olhar profundo quando me lembro e recordo que tu, meu amor, meu amor deixado, me deste a provar o chão de pedra, a poeira dos factos, o áspero das lajes do chão empoeirado pelas inércias desajeitadas, pelas rudes perguntas com que os dias foram manipulados.
Meu amor, meu amor, como é difícil limpar esta camada putrefacta que sobre mim criaste, que sobre mim, amputado, tento sacudir e não consigo, tento aguar e não acho forma de a libertar da pele sem agravo.
Bizarra esta maneira como vejo o chão, tão perto, tão longe e tão compacto, tão perto e ao mesmo tempo tão longe, esparso, feito de um tempo passado, feito não de areia e água, mas de uma qualquer matéria onde deixaste o teu veneno e agora toda ela esboroa e morre devagar, declina, apodrece e vai.

Era costume deixar um beijo na tua face mesmo que ela estivesse crispada, mesmo que ela, sempre fria, me desse todos e mais alguns sinais de que algo de mim já dentro de ti não restava. E depois a lua mudava e depois tu voltavas e até falavas. Eu… continuava embriagado em acreditar. Vezes sem conta, vezes e vezes, a somar sem dar conta, vezes sem mais. Tantas vezes… vezes demais.
Bizarra esta forma agora como acho que o chão é, não difuso, não tão áspero e carcomido como os meus carinhos eram na tua pele, não como a minha carecia e morria de saudade pelo toque dos teus dedos, pelo simples toque da tua mão na minha, um puro e simples gesto dos teus nos meus dedos, sequer um sorriso para os meus olhos, uma ou outra fugaz ternura na simples entoação de uma frase.

Meu amor, meu amor, que de ti eu apodreci sem dar conta e comi, não o pão, mas a carne de mim, as vísceras, o coração.

E largo-me em presença, largo-me em ausência, deixo-me ir em voo de suspiros feito, de tantas frases encontradas nos cantos da minha casa, nos recantos empoeirados da mente da minha casa. Por demais a tua face, por demais as gretas entre o que eu chamei de amor e tu não nunca mo provaste, não nunca sequer disseste, depois, antes ou durante, nem nas gretas do ser que detinhas e era eu. Eu. Eu na fissura, eu na brecha, eu naquelas rachas que atormentaram a parede da vida de nós em desenhos perigosos.
Largo-me sabendo que no chão nada reside a não ser qualquer coisa espezinhada semelhante a um coração.

Não é parte de mim a criação de hiatos num modo difuso e onde acabas sorrindo ironicamente, chamando-me nomes, alcunhando-me de tudo o que te faça mais leve e eu mais culpado. Nunca será suficiente o que desejas que eu não tenha enquanto não fores realmente tu para ti mesma. Eu. Eu apenas quero ser feliz, eu quero respirar tranquilo de vida, eu quero ser-me. Quero que o chão brilhe tanto como o céu, quero que nele nada reste de antipatia ou amargura, quero ver nele apenas o que ele é: aquilo onde caminhamos, aquilo onde vamos pondo os pés.
Largo-me, sabendo que de cada vez que o olho e vejo, não entendo, pois já não me preocupo em descortinar se é tua ou minha, esta ou aquela mancha ali, esmagada no chão.




Largo-me, sabendo que de cada vez que olho o chão vejo, não entendo, mas vejo, pois já não me preocupo em descortinar se é tua ou minha, esta ou aquela mancha ali, esmagada nele, no chão, onde tudo aquilo em que me preocupo, tudo aquilo em que gasto o tempo em me preocupar, acredito que seja mesmo a melhor forma de consideração no modo como a dor que dia-a-dia me infliges me faça ver e olhar, olhar e ver, pois de sentir já me basta tanto e estou farto e desgastado, e é por demais uma falta de respeito, uma ausência de consideração.
A importância que de mim vai para ti é apenas um pedaço avulso, um reflexo esparso mas sempre um anúncio e apenas um indício.Tens belas formas de me dar a superfície, a patine lustrosa das nuances deliciosas que me adoçam os gestos e me cativam na alma mas nada está assim tão definido. São apenas indícios.




Tens belas formas de me dar a superfície, a patine lustrosa das nuances deliciosas que me adoçam os gestos e me cativam na alma. Vizinha do meu limbo, creio que em todas as letras que se me unem aos ouvidos eu largo papéis, todos os papéis que junto, os papéis de rascunho onde garatujo palavras. As palavras que lavro para que não soem apenas pelo ar, meros sons, e voem, pelo ar, soltas ao vento, levadas por ele, meros sons voando livres que se dissipam com os dias. As palavras que lavro em papel não para as aprisionar mas para que não abalem, para que não sejam diluídas na água dos tempos.
Tens belas tecelagens de contornos suaves e outros tantos agrestes e audazes, alquimia sem tintas dentro da moldura com que me encaixilhas; te apraz segurar em quadro este pedaço que amparo. Pedaço que mostro quando estou desaustinado, pedaço que, aposto, não imaginavas eu ter, pedaço que absorveste antes do te mostrar e julgaste ténue, mortiço, e afinal tenho iluminado. Essa tua moldura não tem a medida do meu quadro; repara que esse caixilho está quebrado.
Mas as luzes enganam, acorda, acorda agora, acorda já, as luzes contrastam mas também suavizam e confundem. Acorda, acorda já, as luzes tanto ferem a vista como, difusas, misturam contornos, misturam imagens e criam reflexos, sonhos e miragens.
As luzes enganam mais que o escuro, os brilhos ofuscam e embriagam mas também no escuro os brilhos definem imagens. Acorda, acorda já para a noite que se faz tarde onde o dia urge acontecer sem que me deixes sem medo, sem pudor, sem que sofra, sem dor.
Tens belas formas desenhadas ante as minhas garatujas no papel, este papel que lavro para que as palavras fiquem e o que eu digo perdure, tens autênticas tecelagens maravilhosas de poema e verso, tens conversa para me deixar de rastos. Tens a luz que afaga a superfície desta tela mas a tua moldura não tem a medida deste quadro. Á força e não com jeito tentaste encaixilhar um mundo que não é deste reino. Pára. Respira. Sossega, não penses, não faças nada, apenas pára e sossega. Repara que a tua moldura está quebrada.

Não escrevas por minha causa, não escrevas por causa de mim…
Não me escrevas, meu amor, das tuas palavras sei as letras de cor, pois as tuas palavras estão-me por demais presentes, as palavras e todo o teu ser. Não te suponho, conjecturo ou adivinho, apenas sei.
Não me escrevas a dizer, não me soletres o que achas que não entendo pois das tuas palavras eu te sei as frases e o diálogo, até os silêncios, de cor e salteado.
Não te atrevas a dizer o que não sei pois não tens noção de como sou, não me sabes o segredo. Escreve sem dizer, fala sem palavras no que te oiço num olhar, suspira-me um beijo, grita-me um sorriso, fala no que te desejo sem sequer o murmurar. Vê se és capaz.

Não escrevas por minha causa, meu amor, não escrevas por causa de mim…
Não hesites em me contrariar se te perdoo o mau estar, surpreende-me sem surpresas, dá-me espanto e não sustos, não me devolvas o que sou, responde-me contigo sem qualquer esforço de o seres. Não te suponho, conjecturo ou adivinho; apenas sei.
Não me escrevas apenas para não te calares, não me soletres o que achas que sabes de mim quando eu sei que, de ti, todas as palavras e frases por vezes são monólogo, e dele, até os silêncios eu sei de cor e salteado.
Responde-me sequer sem eu te perguntar a tudo o que sequer nunca imaginei vir um dia a dizer. Vê se és capaz.

Pego na mesma entrada onde me fiz sair e, pego em mim, pego em ti, pego no que acho que sentias aqui. Despego dentro de mim o que acho de ti, o que acreditava que tinhas em luminescência. Despego então isto que está agarrado aos movimentos que não faço, aos movimentos que quero fazer e não consigo, aos gestos que tento e atraso.
Esconde essas letras e suspira-me um espaço.
Pego nas poucas frases que entre os monólogos violentos me detiveram e sinto, na palma das mãos sinto, na polpa da minha pele eu ainda sinto, quando acreditado, sinto o quanto é fácil deixar uma vaga destruir esta praia.
Não te escrevo frases, não te escrevo mais nada. Não te quero sequer ler para que nada que diga se fique por silêncios e atitudes esperadas. Não te quero sequer ler para que nada que possa vir a ser tentado escrever fique implícito ou preso numa qualquer tua escarpa. Não espero encontrar mais vezes esta palavra, esta palavra de três letras, esta palavra não, esta palavra a contrariar as três letras de outra, a que mostra o que sou: A de tinta invisível que perturba o papel e que está amachucada no chão.
Não me quero mais apanhado em meras pontuações de textos acreditados.
Olha para mim, agora, fita-me bem nos olhos, repara agora bem em mim, fita-me bem dentro dos meus olhos e diz. Ou cala-te. Pois despego-me bem dentro do que luz e apago a intenção.
Esconde essas letras e suspira-me um espaço, não me quero mais apanhado em meras pontuações de textos acreditados. Forma-se na sombra da luz o contorno do abandono. O sabor amargo que dói no peito e desce salgado, lentamente, pela face.
Olha para mim, fita-me bem nos olhos, observa agora bem dentro dos meus olhos e repara que me despego facilmente do que parece luz e não é e reconheço, mais que bem, a falsa hipócrita tenção. Essa tua moldura não tem a medida do meu quadro, repara que esse caixilho está quebrado.




Algo enche as sombras que me acompanham, algo me preenche.
A sombra é minha, apenas uma, as outras são da vida. O mundo visível resume-se em cores primárias e tantas mais, quantas mais, tantas outras elas fazem, sombra e cores, e todas são vida.
Não me escrevas os sonhos nem o passado.
Se me descreveres o presente, sempre te posso dizer o que está certo ou o que poderá estar errado.
Volto á noite em um mais querer de sol.
Volto para a lua em reflexos e as gotas doces que me caem na fronte são de água, apenas chuva, mais nada.




Um vento abriu o horizonte, ao longe, varreu o que restava no chão e a poeira subiu, areia subiu, da terra subiu uma tremenda nuvem de pó que atirou as imagens para trás da pele e, na pele, correram riscos que sangraram, deslizaram em marcas dedos cruéis, caíram em dor gestos que sangraram. Pior que a fealdade mascarada por sorrisos cínicos é a maldade por si só: a maldade solitária e sem pejo, gratuita, a maldade que se alegra ao inventar lucro por contrariar os outros, que rejubila em entristecer os outros, ridícula maldade fria que mesmo a tossir pela sua poeira não sufoca de vez o seu respirar de peçonha.

Uma penumbra de nevoeiro desceu e humedeceu tudo, as pedras da calçada ficaram brilhantes, a cor da terra mais escura, as mãos frias e o corpo pantanoso, desconfortável por baixo da roupa gradualmente húmida, quase molhada, o corpo desconfortavelmente colado ás roupas sufocantes e repentinamente pesadas. As pernas arrastavam os passos em bocados de som obtuso num chão ridiculamente adverso, quase manipulador, como se a gravidade aumentasse e uma outra força o soprasse de encontro ao ar, em todas as direcções; o seu andar, para onde ia, era contrariado, sequer o facto de estar em pé, erguido, a caminhar. Nada o fazia ir mas também não ficar.
Passavam viaturas, umas mais rápidas que outras, num correr de faróis, cores, passavam com velocidade em excesso, passavam com ruído e outras, devagar, precaução ou não, tudo passava em névoa colorida, um caleidoscópio misto de poluição, nevoeiro e luz opaca, um turbilhão estúpido feito de confusão.
Uma penumbra de restos condensou-se nas pequenas coisas, adensou pequenas gotas em espaços, rugas, gestos, nervuras, sulcos e dobras, nas mais pequenas coisas que a fealdade mascarada por sorrisos cínicos pudesse defecar, a penumbra húmida nidificou e criou lugar.
Nem pensava no sítio onde punha os pés ao caminhar, andava, não pensava sequer na roupa húmida, pesada, quase molhada, não sentia o corpo enregelado, quase não raciocinava, chegou e abriu a porta, tolhido, com dedos transidos e atabalhoados, na chave, na luz, no acender e apagar logo de seguida a luz, pois magoava-lhe a luz nos olhos, transidos, atabalhoados e cansados, os passos até se deitar, a mágoa de não ser a paz como desejava que fosse, a verdade que deveria suceder, mesmo que não a desejada.

Chove, agora chove e a vontade que se alegra ao inventar lucro por contrariar os outros, que rejubila em entristecer os outros, pinga, pinga em gotas agrestes e esparsas que se condensam nas pequenas coisas, rugas, gestos, em espaços, chove, pinga e entranha-se, em vários lados.
Um vento abriu o horizonte, ao longe, varreu o que restava no chão e a poeira subiu, mas com este tempo molhado, da terra subiu uma tremenda vontade que implodiu, da terra ficou um bafo, quente, que atirou as imagens para trás da pele e, na pele, correram riscos de suor, deslizaram em marcas de sal que foram cicatrizes anunciadas: a pele anoiteceu com a geada, a pele envelheceu com o regresso pois nada nunca foi uma chegada.




Era uma penumbra, mal conseguia discernir os meus pés do caminho em si, menos as sombras que me acompanhavam sem uma única que fosse a minha. Um vento abriu o horizonte ao longe, magoava-me a luz nos olhos, transidos, atabalhoados e cansados, magoava-me a tenacidade, magoava-me isso que não me impedia de continuar. A terra, pedra, areia por baixo dos meus pés, era isso que parecia troar nos meus ouvidos pelo silêncio nocturno onde tudo me pareceu soar igual: alto, demasiado alto. E não queria acordar a paz que me envolvia. Afinal não sentia as minhas passadas e não queria, na minha pele corriam riscos de suor e não queria. Não queria a pele enregelada pela fealdade mascarada, nem maldade solitária, nada.
Estava escuro e respirava o cansaço com alegria, respirava a custo mas o peito estava leve na luz que o ocupava e preenchia, alguém tomara uma bebida tão gasosa e brilhante que explodira e contaminara o mundo de música colorida e animada. Como será que te sentes agora que já dás valor ao prazer, ao facto de respirares o luar e a música colorida de uma ou outra qualquer explosão de alegria?




Estava escuro, mal conseguia discernir os meus pés do caminho em si, menos as sombras que me acompanhavam sem uma única que não fosse a minha. Terra, pedra, areia por baixo dos meus pés. No silêncio nocturno tudo me pareceu soar igual: alto, demasiado alto. E não queria acordar a paz que me envolvia.
Apareço então por entre a folhagem e aproximo-me do mar. Suavemente, a brisa quase que me humedece os lábios e suspiro. Não há ninguém ao redor, dispo-me da realidade e limpo a mente de pensamentos. Inspiro profundamente e largo-me no chão a sonhar.
Lá em cima a lua espreita-me com um sorriso maroto.
Correspondo.




Acordo numa manhã qualquer de uma cidade estúpida,
estico o braço a tactear o espaço a meu lado
…vazio.
Nem morno… frio.
Tinhas ido.
Mesmo estremunhado sorrio e inspiro um olhar para cima,
ainda saboreio na boca um rasto de lua nos meus lábios
…por todo eu o suor do amor no calor daquele abraço.
Tornei a esticar o braço e a sondar o tempo ao lado
…vazio de ninguém.
Acariciei terra, areia, o chão, segurei em tudo esperança
das mãos
nos braços,
de me sentir nos dedos mais uma e outra vez,
colorindo o vazio,
descoberto em ti, tu, horizonte de mim.
Sentir-te o encanto num conforto de luz
que me fez não mais um extraviado.
Solitário, sim…
mas já não triste.
Apenas arrependido por ter acordado.




2009/2010

24 de outubro de 2010

O tempo é um ladrão





Onde vais hoje? – perguntou ela.
Hoje? Sei lá eu… – disse ele.
Como assim?
É como te disse… talvez nem vá a lado nenhum…
Melhor que a lado algum…
Estás a filosofar, é?
Não. Falo apenas, digo…
Já percebi… também queres ir.
Eu? Sei lá onde vais… se quiser sair vou, não preciso de ti. – rematou ela.
Todos precisamos de companhia… – sorriu ele.
Não é isso que está em questão, só te fiz uma pergunta simples.
Sei, sei, mas com ela quiseste dizer muita coisa…
O que te disse foi o que fiz após te perguntar onde ias, mais nada.
Dizes tu…
Claro, ninguém fala por mim. – foi a vez dela sorrir.
Caramba, ainda estás assim?! – desdenhou ele com sarcasmo.
Assim como? Estou apenas aqui…
Não te entendo…
Fácil, nem careces de perguntar.
Como assim?
De novo?
Tanta pergunta…
Que mais te posso responder se não te afirmas?
Vês? De novo perguntas.
Mas o que é que uma coisa tem a ver com a outra?
Isso parece mesmo coisa que eu disse.
Esquece…
Como esquece?
Deixa…
Agora fazes birra?
Não me atentes…
Bonito…
Como assim?
De novo…
Não me provoques.
Ena, estás chateada…
Ainda aí estás?
Agora corres comigo.
Sorte a minha…
É já, se é isso que queres…
Gostava de ver… palavra que gostava…
Como assim?
Não fui clara? – ela estava séria.
Eu… – começou ele.
Não ouviste?
O quê?
Ah, já não te interessa…
O quê?
A conversa, claro… a conversa…
Ah… a conversa.
Que foi que eu disse?
Onde eu ia…
Como?
Estavas a perguntar onde eu ia… era isso.
Boa! Típico teu! – atirou ela.
Mas se não queres ir… porquê isso? – argumentou ele.
Nem te respondo.
Outra vez birra…
Ainda não fiz nenhuma.
Ora…
Não venhas com palavrinhas mansas…
Vês? Assim que te digo isto desmonto-te… – constatou ela.
Como assim? – irritou-se ele.
Por acaso já reparaste quantas vezes dizes ou perguntas o mesmo?
Não desvies…
Não, nada disso, até pelo contrário… apenas acho que estás perdido.
Vês? Assim que tento falar e te toco ficas em silêncio.
Não posso ficar calado?
Calas-te quando te toco e falas onde não mereço.
Mais um silêncio…
Não deixas escapar nada…
Deixa-te de aforismos.
Tu é que és dessas coisas…
Lugares comuns… coisas desse tipo…
Rifões?
Por exemplo…
Agora disfarças, é?
Não sei… – ela encolheu os ombros.
Agora não sabes? – aproveitou ele.
Não abuses da minha paciência…
Tu? Desde quando?
Como assim?
Sim, desde quando és dona de paciência?
Ainda me gozas?
Longe de mim tal ideia…
De facto, não vamos a lado nenhum. – suspirou ela.
Apenas porque não queres ir. – ironizou ele.
Já viste bem que tipo de diálogo?
Este?
Não, outro qualquer, todos os outros… todos, nenhum diferente deste.
Como assim?
Nunca chegamos a lado nenhum devido a essa tua ridícula e jocosa distância…
Que mais te posso dizer?
Não quero que me digas nada, apenas quero que o reconheças. – ela estava irritada.
Nada que eu diga te fará mudar a ideia que tens de mim. – garantiu ele.
Agora fazes-te de vítima?
Eu?
Não funcionamos, é simples, apenas não encontro mais nada em ti que me reveja.
E com essa me despachas, é?
Acho que me tomaste como algo garantido. – suspirou ela.
Só a morte nos garante e mesmo assim, acredito que é o fim. – rematou ele.
Crês que tudo gira em teu redor.
Várias vezes me deixas acreditar em tal…
É preciso ter lata!
Até tu!
Com assim?
Sim, tu, á minha volta, como se eu fosse uma jangada…
Tu? Uma jangada? – soltou ela numa gargalhada.
Que foi agora? – o ar dele era realmente de estupefacção.
Lembras-te do indivíduo sorumbático que um dia me veio bater á porta?
Não? Aquele pedinte que mendigava não pão e vinho e antes sim apenas um abraço?
Caramba… pára de divagar.
Não divago, apenas te recordo… que nem um beijo conseguias dar…
Agora estás a exagerar…
Quase ninguém te podia tocar, de tão frágil e carente.
Olha quem fala, quem se escondia atrás de palavras bonitas e frases elaboradas…
Todas elas tu correspondias na mesma medida. – constatou ela.
Isso é para medir forças, é? – ele quase se irritava.
Permanecer num clima como este apenas nos fará perdê-las.
Não me importo, disto não preciso!
Isto? O que é que temos que já não perdemos?
Achas então que já nada temos em comum?
Acho.
E isso é coisa que se perca?
Tenho sérias dúvidas…
De quê?
Do que senti por ti.
Falas no passado…
Creio que não temos futuro. – ela estava peremptória.
Então onde está a mulher que apenas acreditava no presente? – lembrou ele.
Eu estou aqui, agora, assim como amanhã posso já estar ali…
Não divagues.
Não tinhas onde ir?
Não desvies…
Vai, vai… e deixa-me ir. – e no entanto ela ouvia dentro dela:
(Quero-te tanto, diz-me o que quero ouvir de ti…)
Pois… assim não nos entendemos mesmo. – e soava dentro dele:
(Porque não dizes que me queres? Basta uma palavra para eu ficar…)



2009

22 de outubro de 2010

Dos dias





A poeira dos dias entope-me as narinas mas não me impede o respirar. Apenas não sei bem se estou pronto para recomeçar pois isso lembra-me o quanto já perguntei ao céu, à lua e ao sol… até a ti, rapariga: mostra-me como viver, como se de um poema fosse, como se de uma canção de amor se tratasse.
Depois obviamente que sei, num instante, que tais palavras são mesmo fruto do lirismo da paixão pois mais ninguém o sabe a não ser eu.
Mas isto é mesmo assim.
Ter cuidado com o que a boca diz nesta embriaguez é sempre difícil de tão delicados são estes assuntos do coração. O outro pode muito bem sentir mas ter sempre um discernimento de razão que não perdoe a loucura do sentimento. Nesse tufão, onde até parece ciúme que gera medo, insegurança e ansiedade, a emoção é tanta que surge a perigosa confusão de considerar o outro como ar que se respira, ao ponto de, se ele se afastar, aquele que é deixado sente-se vazio e perdido.
Não.
É bonito talvez como forma de expressão mas disso não deve passar.
Não.
Há que apenas saber compreender as almas intensas, fogosas, espontâneas e talvez megalómanas, há que não as tomar à letra nas suas tiradas quantas vezes exageradas e artísticas. São bonitas e parem sentimentos como autênticas obras de arte para admirar. Mas só para isso mesmo, respeitar e admirar. Pois a sua vida real também é singela, tal qual a de um comum mortal.

A poeira dos dias entope-me as narinas e é claro que por vezes me causa mal-estar. Sei lá em que perguntas me detenho ou demoro, sei lá se estou para recomeçar, sequer se parei ou continuo e vou a tropeçar. Sei que estou aqui e mais cedo ou mais tarde vou decerto ter ainda um ar mais leve para respirar... com ou sem poemas, de silêncios ou palavras, pinturas ou imagens, não interessa, pois nada é eterno. Nem o sentir. Nem o pensar.


2008

21 de outubro de 2010

O Som Que Teria





Pudera eu falar sem mexer os lábios, dizer sem conversar, pudera eu dar som ás minhas ideias no imediato momento de as pensar e ouvirias de mim conjuntos de letras em palavras, as palavras no meu peito, as palavras que, porque não as digo, são os desenhos dos gestos dos meus braços, nas mãos, na ponta dos meus dedos quando te afago.

Ouvirias o meu silêncio proferir as palavras, todas as palavras que mais querias escutar. Serias todo eu e eu, não te saberia, ficava inebriado e sem mim. Saberias pelo silêncio, tudo de mim, e eu seria um fraco.










Pudera eu falar ensurdecido com música, os sons de ti, com os olhos, os meus olhos cegos para te verem, surdos para te dizer uns quaisquer conjuntos de letras que seriam as minhas palavras, as palavras do meu peito, as palavras que, porque não as digo, são esboços, espelhos do meu sorriso, são esquissos do tanto que te sinto.

Ouviria o meu silêncio proferir as palavras, todas as palavras que mais queria escutar em ti. Seria todo tu e tu, não te saberias, ficarias talvez ébria de mim e eu, saberia, pelo silêncio, tudo que em mim não acho.


2010

30 de setembro de 2010

Ouvi Através da Parede



Ouvi através duma parede o que pareceu um murmúrio, um cicio, rumorejar de vagas, sopro de vento em arbustos ou ramos de árvores, assobio leve nas mais altas fragas. Ouvi através duma parede o que me surgiu num sussurro e suponho que em cada centímetro afastado mais perto ouvia nitidamente o que não distinguia, não reconhecia ouvir o que sabia. Mais perto que a presença tinha um som que me ocupava o espaço da memória, enchia o campo da ausência, mais perto do que pensava estar a ouvir e o que realmente conhecia, reconhecia, que me ocupava a curiosidade e me tomava o silencio.
Suponho que não seria ilusão de ouvir o que precisava ouvir, suponho que não seria imaginação minha, vontade incoerente nas pontas soltas desta tapeçaria.




Ouvi através da parede os ruídos costumeiros, dos mais desavindos aos mais comuns e corriqueiros, sopro de vento, brisa sacana, indistinta e urbana. Ouvi através da parede um corte na casca duma árvore, um som que era a lua que não via, ouvia, através da parede desculpas ocas, ingratas e toscas, era a lua e não a via. Mais distinto que um piar de gaivota, uma lenta e comprida vontade rouca, baixa de uma contagem louca, somar e diminuir em contas de agiota. Pode ser que tudo se mova além desta parede que me ocupava a curiosidade, pode ser, que atrás desta parede afinal seja tudo á frente. Um todo ou quase nada passado, apenas presente.


2008

24 de setembro de 2010

O nascer da saudade de ti



A manhã lançava calor aos primeiros passos da madrugada, quase falando de boca fechada, arremessando verdades naquele silencio de quem sabe tudo mas não diz nada. Na rua encharcada onde a chuva pingava gotas invisíveis, multifacetadas, no asfalto brilhante, o frio não era nada. O frio não era nada, o frio não era mais nada que uma diferença entre o corpo e o ar, entre o ser da pele e o espaço que mudava, o espaço que ficara confinado entre as nuvens, o manto baixo das nuvens, um cobertor cinzento e espesso, fosco e multiforme de nuvens. E o sabor da tua pele era uma lembrança que pingava.
Estava calor. Na rua, eram quase espelhos as pedras da calçada, quase cristais as pedras brilhantes da rua, apenas calcário, mas com as gotas da chuva que mal se viam eram uma veladura, fina, uma camada suave e transparente como de verniz onde as luzes morriam com a madrugada. Nascia o dia e as pedras da calçada não faziam ruído na sola dos passos, não recusavam o ir nem devolviam o som das passadas. O calor da rua pensava que o som provável da chuva poderia ser uma das tuas gargalhadas.





As paredes choravam, o dia condensava em gotas a diferença, a ausência, do gelo, do vento, do frio… nos muros, nos tetos, nas paredes o dia condensava em gotas a tua presença. A camada opaca e cinzenta de vidro não era uma vidraça, a camada lisa, cinzenta e opaca, não era mais que a diferença, a fronteira entre mim e a lembrança, a ténue camada do longe e da distância. O frio não era nada, o frio não era mais nada que uma divergência entre o corpo e o ar, entre o ser da pele e o espaço, a mudar.
A chuva trazia claridade, a chuva parecia derreter a luz do sol que brincava com as cores, a chuva trazia o sol em desenhos de luz, brincava aos pintores.
Estava calor e assim o dia, o dia brotava em todo o lado em gotas, lágrimas sem dor, tudo salpicava, escrevia. Em todas as paredes o frio do dia tinha-te posto em mil gotas a cintilar, o brilho dos teus olhos, a tua alegria. Tinha-me salpicado o peito com o teu suspiro em mim, o maior fragor que o silêncio podia ter… o nascer da saudade de ti.


2008

7 de setembro de 2010

Ninguém te vai amar como eu




    Ninguém te vai amar como eu, ninguém vai não respirar, não vai comer como eu não comi, dias, noites a fio, a morrer pensando que vivia, despertar entre nuvens sem acordar, dias, noites a fio, fossilizado numa pedreira colossal de melindro e confusão.
    Ninguém vai nunca dar valor ao que é ter o céu-da-boca a escamar como quem engole peçonha sem dar conta, como quem sorve, sem saber, um veneno que tira a pele da língua e a deixa em carne viva, a latejar. Como se o brilho dos teus olhos fosse a única chama antes ou depois da própria escuridão, a derradeira centelha, como se fosses o sol ou até a lua. Como se porventura fosses tu a última quimera da vida, intuito, a razão única.
    Nunca alguém te vai saber como eu, nos gestos que não são teus porque os detenho como meus, nos gestos meus que adivinham os teus. Ninguém te vai gostar como eu a engolir estupores, a excretar dejectos, de amor, a tentar comer para sobreviver neste pântano agreste, mosto, a engolir qualquer coisa que leva consigo a própria essência do existir, para dentro, para onde não é suposto ir. Nem eu vou amar nada mais que sobreviva de acre e com desgosto.
    Ninguém te irá escutar como eu, a ouvir vezes sem conta a mesma frase que tanto dizia quero-te, como não, vezes sem conta, a mesma estúpida canção, tantas e tantas vezes, e outras tantas que não liguei patavina porque a melodia não soletrava o teu nome. Ninguém vai amar-te como eu, surdo para tudo, nas auroras e nas noites acordadas, eu que fiquei surdo para o mundo pois nenhum vento segredava o teu nome, nunca. Ninguém vai amar-te como eu, sim, porque sabia bem o que tinha ouvido e não quis acreditar, nunca, porque eras tu, a tua pele sem cheiro algum, os teus lábios insonsos, o vento a estalar a pele dos meus, o vento a soprar as palavras onde dizias não me gostar, tudo em ti me cuspia e desdenhava. Mais nada.





    Ninguém te vai amar como eu, ninguém vai não dormir, não vai comer como eu não comi, dias, noites a fio, a mover-me pensando que vivia, acordar entre sonhos sem despertar, dias, noites a fio, petrificado num glaciar descomunal de melindro e confusão.
    Ninguém vai nunca saber o que é sentir o céu-da-boca pelar como quem bebe sem beber um chá a escaldar, como quem come, sem comer, um pedaço que tira a pele da língua e a deixa em carne viva e a sangrar. Como se o brilho dos teus olhos fosse a única luz antes ou depois da própria escuridão, como se a luz fosse tua, como se fosses o sol ou até a lua. Como se porventura fosses tu razão, motivo, a centelha única da vida.
    Nunca alguém te vai saber como eu, nos gestos que não são teus porque os adivinho como meus, nos gestos meus que parecem os teus. Ninguém te vai amar como eu a engolir mosto, tanto mosto acre dos dias, de lava, a tentar comer para sobreviver esse amor agreste, a engolir qualquer coisa que leva consigo a própria garganta atrás, para dentro, para onde não é suposto que vá. Nem eu vou amar nada mais que resida áspera e com mágoa.
    Ninguém te vai amar como eu, a ouvir vezes sem conta a mesma música que tanto dizia quero-te, como, vou esquecer-te, vezes sem conta, a mesma canção estúpida, tantas e tantas vezes, sem parar, e outras tantas que não liguei patavina porque a melodia não soletrava o teu nome. Ninguém vai amar-te como eu, surdo para o mundo, nas madrugadas e nas noites mal dormidas, eu que fiquei surdo para tudo pois nenhum vento segredava o teu nome, nunca. Ninguém vai amar-te como eu, nunca, para os pássaros que pensei capturar, querer os grilos do campo a encher-me as noites com o sossego do teu perfume, o cheiro da tua pele, o sabor dos teus lábios, e afinal, o vento a quebrar a pele dos meus, o vento a soprar um vazio onde nem os grilos nem os pássaros, nada, te sussurrava. Nunca.
    Nada.



2010