9 de agosto de 2009

Ferrugem 0.1





O montículo de folhas brancas e amachucadas, contrapunha o escuro da poeira acumulada com a cinza dos cigarros mal apagados que transbordavam o cinzeiro. O mau cheiro das beatas era doce e acre, mas nauseabundo, trilhava o divagar do pensamento que devia fugir e vogar mas detinha-se, em branco, tão branco como todo aquele papel, ali amarfanhado, em tentativas frustradas, de poucos ou nenhuns parágrafos, por vezes apenas uma ou duas frases, iniciadas, paradas, iniciadas e paradas, quietas logo na segunda ou primeira palavra.

“No meu tempo, aparte, disse uma ou outra pequena mentira, fui dissidente, agora não consigo faltar de modo algum à verdade.”

Pensava, colado na cadeira e ao mesmo tempo inquieto, tremendamente inquieto mas demasiado colado ao cansaço e à ideia. Nada daquilo era o que tinha, queria escrever, nada daquilo era mas não amachucou a folha que retirou com aquelas quantas linhas garatujadas.

“No meu tempo, aparte, disse uma ou outra pequena mentira, fui dissidente, agora não consigo faltar de modo algum à verdade. Amo-te, amo-te, não quero saber do que acham do sentido alcunhado desta frase. Não quero mais acreditar que te esqueces de mim enquanto passo na mesma rua, atravesso a mesma estrada e, do outro lado, tudo é impressionantemente igual tal como diferente…”

Guardou a folha por baixo de umas quantas outras tantas assim, parcas de palavras, também assim, pouco escritas mas nada inusitadas. Apontamentos de letras sem música, ilhas num mar esquálido e branco de possíveis metáforas.
Acendeu um cigarro e procurou a esferográfica para tentar organizar um esquema que, tanto tempo, à imenso tempo, estava já mais que teorizado. E sentiu-se rude e torpe, falso, com falta de emoção para começar. Não podia crer que as palavras o prostituíssem ou de algum modo absorvessem qualquer fôlego para criar.

“No meu tempo, aparte, disse uma ou outra pequena mentira, fui dissidente, agora não consigo faltar de modo algum à verdade. Amo-te, amo-te, não quero saber do que acham do sentido alcunhado desta frase. Não quero mais acreditar que te esqueces de mim enquanto passo na mesma rua, atravesso a mesma estrada e, do outro lado, tudo é impressionantemente igual tal como diferente, como reclamação, onde me irás encontrar nos perdidos e achados, ao fundo num canto esquecido do barracão onde apodrecem os abandonados.”

A vontade de queimar aquelas folhas amachucas foi menor que o frio. Tremeu. Tornou a colocar a folha no lugar, aquele lugar como outro qualquer que não sabia mas se lhe mexesse sabia, sabia que lá estava ou não, se mudasse, se fosse buscar aquelas letras para beber as palavras e com elas escrever outras, finalmente outras, menos dirigidas e menos claras. Eventualmente o vácuo, possivelmente a espera e o contorno agreste de uns quantos obstáculos, ubíqua vontade, perra sensação volátil, reumático pensar. Um ardor de areia a entrar pelos olhos e um frio do vento a quebrar pestanas e crestar lábios não construídos para o agreste do tempo desusado. Espirrou, como se lhe cheirasse o perfume como dantes. Fungou e sabia que nada nunca iria ser como antes. Suspirou e a música fez com que se esquecesse do tamanho amontoado de tudo, viu que afinal até poucos eram os papéis e os cigarros…


2009