12 de novembro de 2009

Papéis Esquecidos



Papéis Esquecidos (I)


Que tristeza é esta que me assalta e possui sem mostrar o rosto, a simples silhueta que seja de que forma for? Que tristeza incógnita é esta que torna tudo tão amargo, tão cinzento e amargo, que até mesmo qualquer sol fica tímido e frio como o de inverno e tudo mais tem o gosto do desgosto? Que faz em mim esta sensação de não estar como quero, este desconforto, quando todo o meu corpo vibra e soa com ecos de interrogação?
Tenho tudo o que dispenso e falta-me o que não encontro. Tenho o que não quero e não sei o que quero, se é que quero realmente o que não tenho.
Fechei as janelas ao mundo e esta indiferença perante o ruído da agitação das ruas forneceu-me uma paz de espírito com uma lucidez tamanha que não poderia interferir com meu pensamento, ficando sempre tudo para um segundo plano, aquele cenário de fundo, lá bem ao longe, tão azul e difuso, tão feio e estragado aqui ao perto. Mas não é a paz que necessito apesar da fealdade, não é a paz que anseio e só que me serve, tem de chegar… é a única que tenho aqui!
Não comporto nenhuma dualidade que me aflija ou fragmente e perca, deixei há muito o labirinto daquele betão frio, tão contundente e brilhante que tomei o travo amargo bem no talo da língua sedenta de liberdade. Pensava que não possuía já autodomínio, pensava, e ainda hoje acho a palavra demasiado matematicamente certa para definir o incerto que faltava.
Não tenho conflitos suburbanos ou interiores, aqui onde penso. Atendendo ao que atrás disse, não sabia sequer se sabia que alguma dessas coisas porventura existiria. O que não me perturba também não me choca. O que não me atenta também não me confronta. Tais lutas para mim são indistintas e isto não é batalha nenhuma. Não tenho cavaleiros medievais em torneio mental, não discuto tréguas de guerras que não sinto, não discuto nem afirmo. Seria inútil e por demais funesto ainda, quebrar qualquer tipo de pacto que desde há muito possa ter enterrado bem fundo um machado de guerra cuja fealdade belicosa não me interessa.
Sinto em mim a calma do solitário, o calor da solidão, a ternura das tuas mãos, doce e querida melancolia, afagando-me o peito com paixão. Lutar não luto, gritar não grito… mas ai de quem não combata a tristeza sem armadura que o proteja!

1984



Papéis Esquecidos (II)


Olha-me
e demite-me se quiseres.
Torce os lábios e faz caretas.
Vês-me?
Então peço-te, director de cena,
despede-me!
Não te coíbas, tira-me o papel.
Porque não sei a minha posição,
porque não decorei a minha fala…
não sei a minha deixa.
Decorar é não ser verdade e eu não gosto de teatros.
Decorar é somente um meio e num meio que é falso.
O faz de conta é tão bonito como é feio,
torce a cara em desagrado mas grita-me para sair e não voltar…
vocifera a tua verdade,
que a minha,
real,
sinceridade,
é espontânea e de improviso é sentimento.
É torrente que por vezes arrasta e afoga,
não é de ser folha ao sabor da corrente.

Maio – 1985



Papéis Esquecidos (III)


A figura moveu-se, deu dois passos e pensou: serei eu? Voltou atrás e tornou a estacar perante o homem á sua frente, tal e qual, também estático, também a pensar, também indeciso, também ausente.
Reconsiderou: será que devo? Desvaneceu tudo com um gesto que não fez e deu três ou quatro passos, seis ou sete, ou… não interessou quantos deu ou não deu, afastou-se e o homem seguiu-a.
Quem seguiu quem? A figura, ele? A quem deu o quinto passo e não se mostrou? Sim, do espaço, um espaço em redor do espelho e do corredor e do espaço, compasso de alguém que não ele.
Reconsiderou: vou! Decidiu mas nada fez, escutava-lhe os passos, por vezes a respiração, ora mais perto ora mais longe, aumentou, diminuiu, os passos, mais rápidos, mais compassados depois, sem respirar pensou ir pé ante pé até perto da respiração dela e cobrir-lhe o sopro com o lençol ou a almofada, ou com outra qualquer coisa que lhe calasse o que achava insuportável.

E agora, meu amigo? Que vais tu pensar? Vais tu, porventura questionar-te inseguro, vais? Imaginar?
Uma falha, digo-te eu, sim, e tudo isto será já estar a pensar demasiado no que aconteceu. Uma discrepância, decerto, sei… já me aconteceu! E todas as palavras nestas frases não serão já sinónimas do aceno dessa insegurança?
Dizes não, não posso, não quero, não posso mesmo, não devo… Certo! Mas a cada ruído, a cada gesto, cada movimento, meros passos, tosse ou conversa, cada uma coisa dessas te faz atirar a cabeça e olhar nervosamente para todo e qualquer lugar.
Não te respondo. Sabes que a fragilidade é pressentida mas questionável… a sensação de ter errado é mais intima que o desejo de acontecer.

Não te posso atingir assim e não há quem apedrejar de culpas, não, é um muro que coloco em teu redor para não te agredir pois é tua, toda tua esta e outra e mais qualquer culpa que exista! Pedir nem sempre é apenas o acto de estender a mão, mas: tenta saber-me, tenta assim, como eu tento saber-te… é por mais vexante.
A figura afastou o homem com um gesto que tudo desvanecia, só fez o que lhe apeteceu, ignorando-o, somente parou quando lhe ouviu a voz, directa e claramente, chamando-a. Sentiu dentro e fora das brumas da febre toda a ridicularia, viu-lhe os lábios sedentos e crestados, gretados, quase cinzentos. Não havia pena para ela. Não havia pena para ele. Se ela escolheu uma altura em que ele estava longe e se ele sentiu por demais violento o embate de ela o deixar por isso mesmo, ao estarem longe, ingloriamente me vergo, pois já nada estava certo.

Maio – 1985



Papéis Esquecidos (IV)


E é mais uma destas alturas…
Altura?
Sensação…
Emoção… não sei,
aquelas alturas que nada têm de alto.
E em baixo:
O baixo.
Porque em baixo estou cheio
por baixo tenho demais:
Tristezas ridículas.
Tristeza triste que não sabe o que é,
nem eu,
ou ninguém
sabe ou saberá um dia,
porque a tristeza não tem espelho onde se mirar.
Algures
Nenhures
Tudo ou nada
Mas vejo que tudo o que é desejo pára,
e não fica
desliza!
E tudo o que é bom passa
um sorriso e…
…e quem me dera as palavras para te chamar.
Porque te sei o nome
Porque te sei o som e o que te impede.
Sei-te o corpo, o cabelo, tuas mãos e o riso.
E as lágrimas que choras sem que ninguém veja…
sei-te o coração num desalinho,
largo um bocejo
solto um grito.
Então aí me olho
aí me desencontro num suspiro,
já não sei o que sei
não sei ainda porque te respiro.

Janeiro – 1987



Papéis Esquecidos (V)


É bonito quando olhos riem em frente a um sorriso.
É bonito quando há mãos que mal se tocam…
mal se dão, mas a força nos diz que sempre existiu algo de união.

E se não há sorrisos, ou sequer risos por aí além,
mas um toque profundo que ninguém sabe de onde vem…
É o quê? É de quem?

E se não há mais nada para além de nós dois,
entre nós o espaço tenta aumentar para ambos…
É o quê? É de quem?

É um barco difícil de navegar, nada perfeito,
tem já rombos no costado, tem já sonhos defraudados…
Mas no fundo, caramba, o que é que tem?

É bonito e nada de tudo isto me impede de sorrir ao olhar-te.
É bonito e não vou ser eu de novo a iludir-me…
é bonito, é bonito, não importa,
realmente nada impede me sentir bem!

1987



Papéis Esquecidos (VI)


Mais que por menos possa ter que te dar e por aquilo que não me dás, ora bem, que veloz  tu partes á desfilada, querida amiga.
Amiga? Não me deixavas se o fosses, não me tinhas assim na mão conforme eu abandonei todo o meu ser iludido no ter. Não!
Aqui deste lado, continuo em busca do que foi que aconteceu. Que foi que disse, fiz ou não fiz, eu sei lá, sei de certeza que este aqui não o mereceu.
Tantas vezes te aparei quando caías e a mim não me cuidavas, se precisava de ombro para chorar ou mão amiga, apenas me davas mais e mais anestesia.
Por isso não acho fantasma de outro que me ensombre, independentemente do que agora faças ou fizeste, apenas não compreendo o vazio a que te votaste.
Ora ali vai o teu ideal, o fulano de tal, o fulano que ao fim destes poucos anos casados te largou com um filho nos braços.
E gostas? E agora, consegues finalmente saborear a vida que tanto querias, a vida desbragada, intensa e viajada, consegues, minha querida amiga?
Amiga!?
Lamento, mas é tarde para me olhares como um cão sem abrigo, esperando que aqui o parvo te acolha, não. É realmente tarde, pois ainda rastejei e o mais que consegui foi joelhos e alma doridos, não! Desiste!
Isto aqui não é nenhum lar de acolhimento, muito menos aos que fingem não ter abrigo!

1987



Papéis Esquecidos (VII)


Normalmente há estrias de sentimentos que se tornam enormes e formam paralelas que até são fáceis de seguir.
Ora há destas linhas quem as veja concorrentes, oblíquas, há quem as destrua e quem sequer as não veja.

1988

9 de agosto de 2009

Ferrugem 0.1





O montículo de folhas brancas e amachucadas, contrapunha o escuro da poeira acumulada com a cinza dos cigarros mal apagados que transbordavam o cinzeiro. O mau cheiro das beatas era doce e acre, mas nauseabundo, trilhava o divagar do pensamento que devia fugir e vogar mas detinha-se, em branco, tão branco como todo aquele papel, ali amarfanhado, em tentativas frustradas, de poucos ou nenhuns parágrafos, por vezes apenas uma ou duas frases, iniciadas, paradas, iniciadas e paradas, quietas logo na segunda ou primeira palavra.

“No meu tempo, aparte, disse uma ou outra pequena mentira, fui dissidente, agora não consigo faltar de modo algum à verdade.”

Pensava, colado na cadeira e ao mesmo tempo inquieto, tremendamente inquieto mas demasiado colado ao cansaço e à ideia. Nada daquilo era o que tinha, queria escrever, nada daquilo era mas não amachucou a folha que retirou com aquelas quantas linhas garatujadas.

“No meu tempo, aparte, disse uma ou outra pequena mentira, fui dissidente, agora não consigo faltar de modo algum à verdade. Amo-te, amo-te, não quero saber do que acham do sentido alcunhado desta frase. Não quero mais acreditar que te esqueces de mim enquanto passo na mesma rua, atravesso a mesma estrada e, do outro lado, tudo é impressionantemente igual tal como diferente…”

Guardou a folha por baixo de umas quantas outras tantas assim, parcas de palavras, também assim, pouco escritas mas nada inusitadas. Apontamentos de letras sem música, ilhas num mar esquálido e branco de possíveis metáforas.
Acendeu um cigarro e procurou a esferográfica para tentar organizar um esquema que, tanto tempo, à imenso tempo, estava já mais que teorizado. E sentiu-se rude e torpe, falso, com falta de emoção para começar. Não podia crer que as palavras o prostituíssem ou de algum modo absorvessem qualquer fôlego para criar.

“No meu tempo, aparte, disse uma ou outra pequena mentira, fui dissidente, agora não consigo faltar de modo algum à verdade. Amo-te, amo-te, não quero saber do que acham do sentido alcunhado desta frase. Não quero mais acreditar que te esqueces de mim enquanto passo na mesma rua, atravesso a mesma estrada e, do outro lado, tudo é impressionantemente igual tal como diferente, como reclamação, onde me irás encontrar nos perdidos e achados, ao fundo num canto esquecido do barracão onde apodrecem os abandonados.”

A vontade de queimar aquelas folhas amachucas foi menor que o frio. Tremeu. Tornou a colocar a folha no lugar, aquele lugar como outro qualquer que não sabia mas se lhe mexesse sabia, sabia que lá estava ou não, se mudasse, se fosse buscar aquelas letras para beber as palavras e com elas escrever outras, finalmente outras, menos dirigidas e menos claras. Eventualmente o vácuo, possivelmente a espera e o contorno agreste de uns quantos obstáculos, ubíqua vontade, perra sensação volátil, reumático pensar. Um ardor de areia a entrar pelos olhos e um frio do vento a quebrar pestanas e crestar lábios não construídos para o agreste do tempo desusado. Espirrou, como se lhe cheirasse o perfume como dantes. Fungou e sabia que nada nunca iria ser como antes. Suspirou e a música fez com que se esquecesse do tamanho amontoado de tudo, viu que afinal até poucos eram os papéis e os cigarros…


2009